A apreensão de um adolescente negro, de 16 anos, após uma questionável atuação policial dentro de um veículo de transporte escolar lotado de crianças, em Imbituba, gerou indignação e pedidos de justiça por parte da população do município. A família do estudante acredita que a ação truculenta tenha sido motivada por questões raciais, uma vez que a presença policial foi acionada pelo motorista do ônibus para solucionar um caso de ameaças envolvendo outros dois rapazes e em nada relacionada com o alvo escolhido pelos policiais, e aguarda investigações policiais pelos possíveis crimes de racismo e injúria racial.
A questionável abordagem foi filmada por uma das testemunhas do ocorrido e aconteceu na última quarta-feira (3), em frente ao prédio da Secretaria Municipal de Educação, na Avenida Dr. João Rimsa, em pleno centro da cidade, por volta das 17h30.
Segundo o advogado da família, Paulo Marcos da Silva, como o caso se deu dentro de um veículo da prefeitura, a promotoria se mobilizou e procurou a vítima para ouvi-la, assumindo as investigações do ocorrido. Se for verificado o crime de racismo, o próprio Ministério Público será o titular da ação. Em caso de confirmação de injúria racial, a ação passa a ser responsabilidade dos familiares do menor e o MP também será titular.
Assista ao vídeo da ação policial (ATENÇÃO: conteúdo com linguagem imprópria e uso de força física)
Testemunhas gravaram a abordagem policial
A ação polêmica foi filmada por um dos passageiros do veículo e documenta, em mais de três minutos de gravação, cenas de abuso de força e autoridade. O começo do vídeo mostra a entrada dos policiais no ônibus e a injustiça ao prontamente envolver o adolescente na ação. Quando a vítima tenta apontar que não era parte da situação, um dos policiais o manda calar a boca. O motorista do ônibus ainda diz, sem ser ouvido: “este menino não tem nada a ver (com a situação)”.
Em seguida, por pensar que o mal-entendido estava resolvido, a vítima se senta. O policial, então, continua a abordagem punitiva.
“Eu não mandei tu sentar. Levanta!”, ordena o policial ao adolescente de 16 anos.
Após se levantar, o jovem é carregado para fora do veículo, imobilizado com técnica de enforcamento e asfixia. As cenas seguintes mostram a imediata revolta das crianças presentes na operação, que testemunhavam a ação truculenta, desacreditadas, protestando pelas janelas do ônibus. Duas delas protestam em diálogo que pode ser escutado.
“Ele não fez nada”
Em determinando momento da gravação, uma é possível ouvir uma das testemunhas afirmando se tratar de um caso de racismo.
– “É racismo isso daí, porque com os outros ele não fez nada.”
– “Que nojo”
Mesmo com todas as testemunhas do fato afirmando a falta de ligação da vítima com a denúncia, as imagens mostram os policiais insistindo no tratamento abrupto, levando o jovem à delegacia. O estudante relatou, respaldado pelo vídeo, a sequência de fatos e ainda apontou alguns momentos que não foram gravados.
“Os policiais perguntaram para o motorista quem eram os infratores o motorista disse que eram os dois de moletom preto. Mas, mesmo assim, eu fui o primeiro a ser abordado. Me mandaram por a mão na cabeça e assim em fiz, mesmo eu repetindo, e o motorista também, que eu não tinha nada com a situação. Eu me sentei e fui abordado, novamente, como está no vídeo. Eu fui arrancado do ônibus e agredido, física e verbalmente. Depois disso, foi o que as imagens mostram. Muita humilhação desnecessária. A polícia está alegando desacato, mas até eu usar algumas palavras consideradas desacato… olha o que eu passei. Fui algemado e colocado em um camburão”, protesta o menor.
O relato da família
Procurada pela reportagem do AHora, a mãe do estudante revelou também ter sido, bem como o marido, alvo de humilhação por parte dos agentes de segurança pública, o que agrava o sofrimento e a revolta da família.
“Meu filho é um bom jovem, pegou o ônibus escolar do município para ir embora, após o estágio. Dentro do ônibus, estava ele algumas crianças e mais dois jovens, os envolvidos na razão do chamamento da polícia. Segundo o motorista, os dois jovens já haviam incomodado em um outro horário e ele chamou a polícia. Os oficiais chegam até o local e abordam o meu filho, que não tinha nada a ver com o ocorrido e, mesmo o motorista falando que ele não tinha nada com a situação, as crianças gritando que meu filho era inocente, ele foi brutalmente arrancado do ônibus, como as imagens mostram. E as cenas não acabaram ali”, relata.
“Ele foi algemado e levado para a delegacia. Eu e meu esposo também fomos humilhados. Nossos advogados já fizeram os pedidos das imagens da delegacia. E por isso estamos indignados. Meu filho tem 16 anos e estava vindo do serviço. Mesmo todos dizendo que ele não tinha nada a ver foi tratado como bandido, foi o primeiro a ser abordado. E por que? Por ser, sim, negro. A polícia alega desacato, mas as imagens mostram tudo. Ele reagiu apenas com choro e gritos de socorro”, completa a mãe.
Nota de repúdio oficial da OAB/SC
Na manhã do sábado, a seção catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) publicou uma nota pública de repúdio pela atuação dos policiais militares, assinada por Eduardo Mello e Souza, Presidente em exercício da OAB/SC, Rodrigo Alessandro Sartoti, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC e Pierre Vieira Roussenq, Presidente da da Subseção de Imbituba da OAB/SC. Leia a nota na íntegra.
“A Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina, tomou ciência nesta manhã (6) de uma abordagem realizada por Policiais Militares contra um jovem negro em transporte público, no município de Imbituba, com uso indevido da força física e possível motivação racial.
A OAB/SC vem a público repudiar tal comportamento, que não se alinha com a missão da Polícia Militar do Estado, e informa à sociedade catarinense que, por meio da Comissão de Direitos Humanos, está acompanhando de perto as investigações deste fato, visando à punição dos envolvidos e o necessário amparo ao cidadão vítima do ato racista.
A OAB/SC reafirma seu compromisso legal e institucional de combate a todas as formas de discriminação, em especial o racismo, que ainda se faz presente em nosso país.
Florianópolis, 06 de agosto de 2022.”
Nota-Resposta da PM de Imbituba ao caso foi publicada no Instagram
O posicionamento da Polícia Militar do município veio em postagem publicada no perfil da entidade no Instagram, também no sábado. Confira.
A Polícia Militar de Santa Catarina, através do 34º BPM, a respeito de ocorrência do dia 03 de agosto de 2022, em Imbituba, vem esclarecer que:
1. Policiais do 34º BPM foram acionados para atender uma ocorrência onde alguns adolescentes estariam no interior de um ônibus escolar ameaçando o motorista e o monitor afirmando que os mesmos estariam armados;
2. No relato, as ameaças começaram quando o motorista e o monitor do ônibus escolar pediram para que os adolescentes mostrassem as carteiras de estudantes ao entrarem no ônibus, porém um dos adolescentes disse que não era estudante e iria pegar uma carona e outros dois se negaram a mostrar o documento solicitado. Diante das ameaças, o motorista parou o ônibus em frente à Secretaria Municipal de Educação e informou a situação acionando a Polícia Militar;
3. Quando os policiais chegaram ao local, as vítimas, ao descreverem os adolescentes que estavam causando o transtorno, apontaram como um dos suspeitos um rapaz que estava usando um agasalho de cor preta. “Foi o de preto”, afirmou uma das vítimas. Nesse momento um dos policiais pergunta: “Esse aqui de preto?”, aproximando-se do suspeito, reconhecido pelas vítimas que estavam no interior do ônibus.
4. A Polícia Militar de Santa Catarina rechaça qualquer tipo de discriminação e utiliza de todos os protocolos para a identificação dos suspeitos e para a resolução da ocorrência;
5. Os adolescentes foram apreendidos por ameaça, desobediência e desacato e encaminhados à Delegacia de Polícia Civil para realização dos procedimentos cabíveis.
6. A Polícia Militar de Santa Catarina e o comando do 34º BPM trabalha para preservar a ordem e proteger a vida e sempre preservou pela observância total dos protocolos operacionais.
Governo Municipal se pronuncia
“Segundo a Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esporte (SEDUCE), no último dia 03 de agosto, dois adolescentes, que não são alunos da rede municipal ou estadual de ensino, tentaram entrar no ônibus escolar da Prefeitura de Imbituba, por volta de 12h30, na altura do bairro de Vila Nova Alvorada (Divineia).
Por não estarem portando a carteirinha de estudante, eles foram impedidos de entrar no veículo. Diante do fato, os menores de idade efetuaram chutes e socos no ônibus, deixando cerca de 40 crianças assustadas.
O motorista, então, seguiu viajem até o destino, a Escola de Educação Básico Henrique Lage, no Centro de Imbituba. Após deixar os estudantes no local, o condutor se dirigiu até a sede da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esporte e registrou um boletim de ocorrência on-line.
Por volta de 17h30, o motorista retornou à escola Henrique Lage para buscar os alunos. No local, ele foi surpreendido, novamente, pelos dois jovens. Desta vez, os rapazes estavam acompanhados de um terceiro adolescente, este estagiário da prefeitura, que entrou no veículo para pedir uma carona.
No interior do ônibus, a dupla fez ameaças ao monitor, alegando estarem portando uma arma de fogo. Após as ameaças e a recusa em a descer do veículo, a Polícia Militar foi acionada.
A partir desse momento, toda a ação relacionada aos adolescentes foi conduzida pela PM, no intuito de proteger as crianças que estavam no veículo.
Ainda segundo a SEDUCE, os jovens foram conduzidos à delegacia, inclusive, o terceiro rapaz, que não estava envolvido no caso, mas, que teria desacatado os policiais.
A Secretaria de Educação Cultura e Esporte esclarece que é de responsabilidade das escolas encaminharem a lista atualizada dos alunos e a veracidade das informações contidas na mesma. A SEDUCE agradece ao 34º Batalhão de Polícia Militar de Imbituba pela rápida e eficiente ação, zelando pela segurança dos alunos.”
Ministério Público de Santa Catarina também publica posicionamento
“Quanto aos fatos, a 2ª Promotoria de Justiça de Imbituba tem a informar que, tão logo o Ministério Público tomou conhecimento dos fatos, instaurou-se um procedimento para apuração da conduta dos policiais, tendo realizado a oitiva do adolescente no dia 5-8-2022 e encaminhado pedidos de diligências aos órgãos públicos envolvidos. Foram solicitadas à Polícia Militar, à Polícia Civil e à Secretaria de Educação do município imagens de câmeras de segurança que possam ter registrado os fatos. Além disso, houve remessa de cópias à 1ª Promotoria de Justiça de Imbituba, em razão da sua atribuição em matéria de infância e juventude.”
Racismo x Injúria Racial
Embora impliquem em possibilidade de incidência da responsabilidade penal, os conceitos jurídicos de injúria racial e racismo são diferentes. O primeiro está contido no Código Penal brasileiro e o segundo, previsto na Lei nº 7.716/1989. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível.
Neste ano, um projeto inicial da deputada Tia Eron, do Republicanos da Bahia, e do ex-deputado Bebeto, visa alterar a Lei do Racismo para aumentar de 1 a 3 anos para 2 a 5 anos de reclusão e multa a pena de injúria racial para ofensas cometidas publicamente. Mas o relator no Senado, Paulo Paim, do PT do Rio Grande do Sul, ampliou as situações que poderão ser enquadradas como crime, que será imprescritível e inafiançável. Pelo projeto, quem ofender alguém por razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional será punido com reclusão de 2 a 5 anos e multa, com aumento da metade se o ataque for cometido com a ajuda de duas ou mais pessoas e nas redes sociais.
Pela proposta, o ofensor não poderá participar por 3 anos de eventos esportivos, artísticos e culturais. A proposta ainda pune ofensa a alguém por sua condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência ou por questão religiosa. O projeto voltou à Câmara dos Deputados.