Sempre volto aos anos setenta. Dizem que com o tempo passamos a lembrar da juventude com mais frequência. Pode ser e agradeço a teoria, pois foi uma época farta de aprendizado e emoções nas aventuras.
Creio que muitos dos antigos saberão de cara de quem falo, o que não tira o ar de mistério, agregando mais confiabilidade ao conto.
Havia um caminho sobre a areia quente dos cômoros. Espinhos de capim ladeavam e feriam os pés descalços e tinha que suportar na raça a areia escaldante. Por fim, a tudo se acostuma.
Os dois baldes de zinco cheios de água do poço marcavam fundo a palma da minha mão, além de saber que se ela não controlasse os seus cachorros, estaria numa situação de risco. Bom, em risco eu já estava.
Ela caminhava na lentidão do tempo. Seu tamanco separava a areia quente da sola dos seus pés. Um vestido em tecido que outrora fora azul florido estava carregado de espinhos na bainha. Uma camisa, isto na minha ideia de vestimenta feminina, mais clara, sem fricote nem flores. Mangas compridas dobradas algumas vezes deixando os braços queimados de sol. Veias à mostra na magreza. E suas mãos eram finas, mãos da espera.
Como eram lentos aqueles passos! A coluna arcada. À cabeça um lenço tão antigo quanto o resto do vestuário. Escondia os cabelos numa touca. Aliás, como seriam aqueles cabelos? A face curtida do sol, magra por demais, um nariz proeminente e uma boca sem dente transformavam um rosto que outrora fora amado.
Escondida por mamoneiras e girassóis de praia, sua casa sombreava e dava o ar mais sinistro para a visão de um jovem como eu. A areia já estava a mais de palmo no costado das paredes externas. A porta de entrada sempre varrida, sempre forçando a areia, teimando em fechar, e fechando de tanto teimar.
Entrei duas vezes na casa sem pintura, sem luxo algum. Escura, escondia saudade. Medo, quem sabe. Quantas lembranças volitavam naquele silêncio de vida, de espera, de agonia, a voz para mim. Soava como raio no seu som antes do trovão. E ai se fizesse bagunça: eram pragas, chispas de língua afiada, defesa de território. Mas, isso faziam seus cachorros, e como faziam bem!
Ela ia à frente, comandando seus guarda-costas. Sabia cada nome, e cada um a obedecia cegamente.
– Sai, lua. Amarelo, não faz isso. Pitoco, passa cá, sarnento!
E assim seguíamos lentamente aquela trilha, serpenteando e desviando dos pés de butiá ou das moitas de espinhos. Chegamos à casa. Ela abre a porta desamarrando uma fieira custa de algodão. A porta gemeu no seu desespero, eu claro no meu também. Era um olho na porta e no que poderia ver daquela casa sinistra, outro nos cachorros. E se mais os tivesse, estariam olhando para todos os lados.
Um cachorro rosnou quando meus olhos encontraram os dele, e outros dez fizeram o mesmo. Cessaram ao ouvir a voz da dona. Um suor frio escorria pelas minhas costas. Certo, o sol estava abrasador, eu sem camisa, os baldes eram leves, mas devido a lentidão dos passos, pesavam muito.
– Coloca aqui, meu filho.
Coloquei e aproveitei pra ver o interior da casa. A areia brotava pelo assoalho. Um cheiro de cachorro e fezes dos seus filhotes, uma bagunça, onde o tempo reclama espaço no movimento das dunas.
– Obrigado – agradeceu ela.
– De nada. Se precisar é só pedir que trago a água.
– Farei isso sim.
– E agora, para eu sair daqui sem ser mordido?
– Eles não vão te morder. Você me ajudou.
A garantia não era grande, mas tinha o peso do tempo e de quem os alimenta. Dei meu primeiro passo de costas, saí da casa, virei e cada passo era uma oração. Dez metros, 20 metros e ainda era observado por uma boa porção de par de olhos e dentes afiados. Enfim, área de segurança. Corri feito louco, e ria ao mesmo tempo.
Minha mãe quis me dar uns cascudos, mas o que passei já era castigo. Então, ficou por isto mesmo.
Esta mulher misteriosa existiu sim. Fora casada com um faroleiro que cuidava do farol das Araras, tinha um filho com ele e os dois vieram a morrer nas águas revoltas de um inverno qualquer.
O tempo passou, o canto se modificou e as histórias ficaram soterradas nas areias. Os cachorros foram sumindo. Soube mais tarde que havia saído dali e falecera em algum lugar qualquer. Não se trata de um relato histórico, nem de uma ficção alongada. É na verdade o testemunho de um adolescente que agora recorda suas aventuras.
Volta e meia lembro-me dela, como se estivesse do meu lado, vestida da mesma maneira, com baldes de zinco à mão, passos lentos, arrastados, vestido varrendo caminho em areia, meia dúzia de cachorro vira-lata, magrelos, porém destemidos na guarda.
Fico imaginando quantas vezes ficou de pé ou sentada num banco tosco, olhando o giro do farol, no seu eterno pulsar, sinal para tantos outros que no mar navegam, seria seu esposo e filho mandando recado dizendo que são luz?
Será que a falta fez diminuir lentamente os passos, e toda vez que buscava baldes com água, um olhar seguia a corrente até a ilha das Araras?
Tudo é questão de visão e de tempo, onde esteja hoje, estará com os seus, alguns cachorros vadios ao lado balançando o rabo, grunhindo e pedindo um naco de pão. Sei que neste momento já devem saber de quem falo.
Falo da minha vizinha de praia, a Dona Rosinha Saruga. Que Deus a tenha.
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SOBRE O COLUNISTA: Com 45 anos dedicados a criação de histórias e a produção de livros, Dario Cabral da Silva Neto, de 60 anos escreve poesias e se dedica ao desenvolvimento de romances. Dos 21 títulos já escritos, nove foram publicados, o mais recente “Redescobrindo a Vida”.
Entre 1973 e 2000, Dario era, exclusivamente, poeta, mas em 2000, decidiu se transformar em romancista. Entre as surpreendentes obras, que são vendidas por R$ 30, estão os clássicos Catador de Sonhos, Uma Questão de Amor, A Ravina, Pétalas de Amor, O Segredo de Melissa e a Caminhada do Zé Mundão.
Os livros escritos por Dario não têm foco religioso, mas trazem mensagens espiritualizadas.
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