Não há lugar que não tenha algum mistério. Imbituba também está neste roteiro. Se sairmos em busca destas coisas misteriosas, voltaremos cheios de “histórias”, algumas hilárias, outras nem tanto, mas todas carregadas de mistérios. Eis que me encontro naqueles dias de recesso literário, onde escrever é um tanto complicado.
Pode ser que meu arquivo esteja chegando ao fim, pode ser apenas saudade no meu coração, que impede outro lembrar. A partir de hoje publicarei uma compilação destes MISTÉRIOS DE IMBITUBA. Um a cada semana. Espero que sintam o mesmo prazer que tenho ao descrevê-los.
Caminho do Rei
Não sei como e nem porque o sei, quem sabe nas rodas em fogueira de canto de praia, nas histórias contadas pelos mais velhos, que sempre tinham pesadelos ao ouvir daqueles outros mais velhos, e, nesta mandala de tempo eternizado nas palavras, sempre dos mais velhos.
Pois bem, transitar por Imbituba nos anos 1970 era, a pé, a cavalo, ou de monareta. Por estes lugares, os carros geralmente não conseguiriam.
Bem fiz eu, que, possuidor da melhor máquina sobre duas rodas, minha Monareta amarela, podia desbravar estes sertões. Indo pela avenida que leva ao trevo norte, para Nova Brasília, que nesta época era apenas um ponto de parada de caravanas de comércio oriundas das veredas de Imaruí, Paulo Lopes, Garopaba. Mas vamos contar do seu início.
Munido de um gongá com garrafas com água, algumas frutas, uma barraca que desenterrei no canto da praia da Vila após um grande temporal, e um facão para a lenha do fogo. Saí do canto sob o olhar de gozação do meu pai, como quem diz: “Na hora do jantar estarás de volta”.
Pedalando pela areia molhada da maré alta, meus pensamentos eram de redescobrir lugares descritos nas conversas destas rodas de fogueira, contadas por meu grande inspirador, Seo Vadinho. O depósito de carvão da Companhia Docas chegou rapidinho, passei pela casa do Seu Nabor, olhei para ver se via meus amigos Porróque, Nêno, e nada. Deviam estar dormindo. Cruzei o trilho depois de esperar pela Maria Fumaça trazendo vagões com carvão de Criciúma e logo veio à casa do Beto Apolinário. Parei, gritei e nada. Parece que esta aventura seria solo. Tudo bem. Nada que eu já não tivesse feito.
Sorri ao passar pelo “clube dos pretos”, e, a casa do último dos companheiros de aventura, o Xuxa. Pena, não dormiu em casa, portanto estou só. Desci a lombada que levava à Cancha e, dali até a beira praia do Porto, seguindo para meu destino, a casa da Dona Bertulina, comadre da minha mãe. Prédio de esquina. Mas, antes, uma casa, hoje soterrada pelo gesso da ICC. Segui a passo, quero dizer, a pedal.
Olhava o mar e seus barcos de pesca, seis, para ser exato, ancorados esperando o bom tempo. Soltei um palavrão. O tempo, droga, isso será complicado se chover. Voltar seria confirmar que fui derrotado e seria uma vergonha a mais no meu currículo de desbravador. Rezei um Pai Nosso e voltei ao meu destino. Uma ou outra garota soltava um gritinho quando eu passava. Motivo? Meus cabelos longos cacheados, cheios de sal. Uma loucura! (risos).
A subida do Paredão, mais uma escola de iniciação sexual a ser vencida com a língua exposta. Minha Monareta com transmissão direta, sem marchas, só na força do feijão com mariscada eu venci com facilidade. Mentira. Estava, sim, com a língua para fora.
Olhei à ladeira e, como sempre fazia, rezei para descer com freio. Tinha que parar na curva da Taboa e meu destino final estava aberto. Respirei fundo, coloquei o gongá para trás e comecei a descer. Os dez primeiros metros foram normais. Daí só na Mão de Deus, estrada de areão com saibro, algumas pedras, buracos, carros subindo e, claro, os caminhões que iam buscar azulejos na cerâmica ICISA. Eu, neste descer com cuidado, descia, mas cuidado mesmo só na somatória do tempo e se não houvesse queda.
O Caminho do Rei, arenoso, ladeado de mato, alguns pontos fazendo um túnel verde com sombras. Isso de dia. Imagine a noite sem luar, caminho feito a pé, empurrando a Monareta, gongá atrapalhando, suor escorrendo e o tempo passando. Por falar em tempo, levei uma hora e meia para chegar até ali e ainda faltava vencer aquele quilômetro de caminho até meu destino, onde o campo se abre e é mais plano e, onde dizia Seu Vadinho, as coisas aconteciam.
Acelerando esta história, pois sei que estão ávidos por saber o que aconteceu, chego e largo a Monareta. Descanso um pouco, cato algumas varas para armar a barraca, lenha para assar a galinha temperada por minha irmã. De antemão, sabendo que o tempero está forte e apimentado.
O fogo teima em acender e a galinha em ficar pronta. A primeira garrafa com água, esvaziei. Só tinham mais duas, tinha que durar. Enfim, tudo pronto e já eram três da tarde. Deu aquele soninho bom, deitei no bafo interno da barraca e dormi até às oito da noite. Fogo apagado, mas ainda quente e fácil para reacender, assim o fiz.
As sombras volitavam ao clamor das chamas. Grilos e outros ruídos noturnos não davam medo, somente um fio gelado correndo a coluna eriçando o cabelo da nuca, no meu caso, tentando.
Eram 22h30, e nada de estranho. Comecei a duvidar daquela história. Em contrapartida, esquematizava alguma em revide, isso não ficaria assim. Um ruído mais forte; virei a cabeça na direção do som, peguei o facão e fiquei “atento”, quero dizer, “com medo”.
Pareceu-me um bufar animalesco. Ficar ali seria o mesmo que se deixar levar pelo medo. Armado de coragem, dei alguns passos. Facão numa das mãos, um pedaço de lenha como tocha na outra e segui o som. “Por que fui fazer isto, meu Deus?”.
Ali no caminho, um cavalo e seu cavaleiro, uma figura horrenda, toda negra. Notei detalhes em prata no aparato da montaria, na vestimenta deste e, creiam: não tinha rosto. Um chapéu escondia a face. O cavalo ergue suas patas dianteiras e gira, mostrando o que arrastava: um caixão para defunto, em madeira tosca, pesado, a corda tramada em sisal, grossa.
Fiquei paralisado, com olhos esbugalhados. Não suava, pois já tinha feito isto no primeiro segundo. O cavaleiro vira seu rosto fúnebre para mim e com o braço esquerdo aponta a saída do Caminho do Rei. Olhei na direção na qual que ele apontava e, quando voltei a olhar para o cavaleiro, coisa que não queria fazer, mas tinha que fazê-lo, e fiz, contradito, mas fiz, juro que fiz, ele havia sumido.
Nada de cavaleiro e cavalo, nem o caixão, porém, os rastros ficaram como mostra da verdade. Apaguei o fogo, e comecei a desarmar a barraca. Claro que, se provado fosse, seria recorde mundial. Enrolei como pude e como havia consumido grande parte do que trazia no gongá, e mesmo que não o tivesse feito, este não incomodaria, peguei a Monareta. Mas, e agora?
Como passar por onde se manifestou aquela figura horrenda? Sei que nestas horas ou se trava ou se borra. Fiz os dois, mas consegui passar. E como a volta sempre é menor que a ida, chega à volta da Taboa, monto e começo a pedalar. Não conseguia me firmar no selim, escorregava, forcei a pedalada de pé, ficou melhor, descer a lomba do paredão até que não foi complicado.
Era exatamente meia-noite e cinquenta e três minutos quando cheguei à praia da Vila. Já mais calmo, começo a sentir os frutos desta aventura, deixo a Monareta na praia e entro na água fria daquele início de madrugada e, num mergulho, dispo-me e lavo-me. Não sei se todo aventureiro, covarde ou não, faria o que fiz. Tomei meu melhor banho e chego ao rancho da praia cheirando a maresia, normal de todos os dias. Busco o balde e com a água do poço lavo a Monareta, deixando-a livre desta cumplicidade.
Bato a porta, ouço o som da tranca escorregando no encaixe e num olhar entre a graça e o sono, meu pai abre a porta. E o que ele vê… Disse-me depois: “Achei que era um fantasma, de branco”. Abri meu melhor sorriso amarelo e fui deitar salgado mesmo.
As histórias contadas em roda de fogueira são todas verdadeiras. Acreditem.