O Caminho do Rei é uma trilha que vem de Petrópolis até Laguna, pelo menos foi o que me ensinaram, e em alguns livros trazem referência. Pois bem, deixando a história para os historiadores; vamos para o que os livros não falam.
As grandes construções, antigas e modernas, deixam segredos escondidos à beira do caminho. Não é interessante saber quantas vidas foram ceifadas na sua construção.
Cortar, rasgando morros e serras, construindo pontes, cruzando rios e riachos, buscando o melhor caminho, assim serpenteando vinha crescendo a trilha conhecida como Caminho do Rei. Sabemos que foi designado por Dom Pedro II às suas colônias, afim que pudesse criar um meio de comunicação mais rápido entre as colônias, por terra.
A mão do negro segura a picareta, foice, enxada, acumulando calos e sangue nas mãos que um dia curavam. Vinham nesta faina criando histórias, vivenciando tormentos e morte.
Como sempre faço, deixo os personagens reais descansarem e uso da ficção para expor esses lamentos.
Dos outros estados nada sei, só sei o que me foi contado por um amigo que viveu esta saga.
Assim…
Fomos recolhidos numa senzala entre Paulo Lopes e Siriú, já estávamos na lida há quatro anos, rasgando encosta de morros, rolando pedras, cortando árvores maduras que serviriam para construir pontes, fazer arrimo de encosta, ou construir moradias que ficavam aos feitores ao longo do caminho.
Quando do plano a maravilha se estendia na areia mole de restinga ou terra negra dos vales, lágrimas eram despejadas neste alívio temporário, mas quando pegávamos terra de pedras, em cada uma ficava lasca de pele e sangue.
O cavalo e o boi eram as máquinas usadas para o serviço que não podíamos na Graça de Deus fazer, entretanto, também serviam para caçar os negros fugitivos numa peleja divertida dos capatazes de grupo.
Lembro-me de certa feita que numa região alagada, tínhamos que rolar pedras menores, que serviriam de lastro para o barro, assim cortando o pântano em duas metades. Olhávamos para trás e víamos uma serpente desenhando matas, era bonito ver o que a dor e sangue poderiam criar.
Algumas cabanas foram construídas nesta região, um ou outro senhor tomava posse e expandia seus negócios, a pesca era boa, a caça também rendia, os planos arenosos serviam para o plantio da mandioca e alguns engenhos foram criados.
Quando o inverno chegou nem lembrava que ano seguia em curso, nem que dia da semana estava; era de sol a sol e a noite o sono prendia os olhos até o estalar do chicote na parede de tiririca das malocas, um café ralo com farinha e açúcar, noutras fazíamos um pirão de mandioca com peixe pescados por aqueles outros negros da faina.
Neste período de frio, a dor doía demais, mosquitos ferviam nas costas e a febre consumia corpos, mas olhávamos para trás e a serpente crescia em mais curvas, nós éramos a sua cabeça.
Os senhores calculavam a distância que deveria ser aberta, outro grupo vinha atrás alargando a trilha, outro fazia o aplanamento e por fim as carroças singravam terras, que se elevam e se contorcem numa descida de serra, seguiam ligeiras no passo do boi, nos planos e paravam sempre perto de um novo início.
Quero te contar meu amigo: das mortes, mortes sem velas, mortes de estrada e de caminho, mortes que sempre deixava sorriso nos lábios grossos e rachados dos que não venciam a lida. Nessas horas derradeiras compreendíamos que a liberdade chegara neste abraço sem vida.
Muitos nos momentos derradeiros diziam ver as planícies de África, outros das praias ensolaradas das suas ilhas de origens, neste carinho dos sonhos libertados na agonia da morte, o sorriso nascia, brotava deixando um brilho nos olhos do negro. O fim chegara.
Sabemos não é meu amigo, que a morte é apenas uma passagem, e por ser passagem, muitos ficaram presos no caminho, pelo ódio crescente nos corações, pelo medo do abandono sem credo e sem fé, ou ainda pelo desespero do ser sepultado sem respeito, numa vala qualquer. Um marco deixado sob a terra pelo caminho rasgado, pelo progresso desejado, pela saga desta luta travada pela vida,
Começou nesta metade de século o crescimento das lendas, contadas para fazer justiça àqueles que nela pereceram, as aparições, pedindo ajuda, pedindo comida, fazendo pirraça, colocando medo na trilha.
Os capatazes começaram a falar de caixões de defunto atravessados no caminho do Rei, outros juravam pelo fio da espada que negro vestido de branco imaculado, uma vez que nossas vestes eram farrapos, em procissões cruzavam o caminho assustando as montarias e os bois de carro.
Muitos irmãos meus, pereceram nesta labuta de sangue, quando podíamos e sob o manto da noite protegidos, colocávamos três pedras, duas de base e uma acima como marco da lembrança do negro perecido. Quando dava esculpíamos uma cruz numa pedra maior, alguns capatazes faziam vista grossa, outros rasgavam nossas costas,
Era comum ouvir dizer que fulano, negro morto, apareceu com uma tocha em fogo medindo passo no caminho que rasgara; início e fim da sua jornada, lamento das vozes que, caladas, singravam a terra sangrando a carne e a alma.
Almas que sem vela e velório, sem reza e sem cantoria nativa para elevar o caminho da nova jornada, prendiam cativos os negros do caminho. Quando um jovem vencia os anos de grilhões e corrente, era para deixar sua carne num rasgo de morro, num lugar desconhecido, atropelado pelos pensamentos de ir além, ficavam reclusos na assombração do medo.
É meu amigo, hoje posso falar destas dores sem lágrimas para lavar a alma de quem ficou na vereda, hoje posso na Graça de Deus vir contar o que não é contado nos bancos de escola, nem na voz doce da canção de adeus, lamento das noites em lua cheia, quando meus irmãos seguem a passo o caminho do Rei.
Sabe meu amigo, nem tudo foi lágrima, não, nem tudo. Tinha homem branco de coração bom, tinha muito homem bom. Trocava nossos trapos por outros novos de algodão cru. Tinha alimento bom, e sempre que era permitida a pesca que servia para matar a fome de todos. Um feitor, certa vez, trouxe cinco capivaras gordas e grandes num carro de boi, nem dormi naquela noite, quanta alegria num pingo de existência.
Eu vim te contar esta saga para que compreendas que nada é eterno, tudo é passageiro, o caminho já não existe mais do que algumas braças, outros caminhos por cima passam, outras almas perecem neles, outras histórias servem de lastro para que um Rei possa dar seus passos.
Até meu amigo, até que um dia se veja na luz da lua cheia a canção dos negros, sentados nos tocos, até que as fogueiras iluminando largos e passos enfeitem sonhos de liberdade, até meu amigo nesse adeus sem ser eterno, até meu amigo, que a luz que brilha nos olhos daqueles que descobrem um túmulo de beira de caminho seja luz de esperança para os que nele foram deixados.
Sempre haverá na miçanga de um rosário o lamento de um negro, sempre haverá numa benzedeira de vila um lamento de negro, sempre haverá na cura de um mal o lamento de um negro, lamento este transformado em canção de vento, em chiado de praia, no doce sabor de um cuscuz, no riso liberto depois da chuva na voz de um bem-te-vi.
Até mais ver meu amigo.