Quero, em primeiríssima instância, me solidarizar com o sofrimento trágico sofrido no Rio Grande do Sul e reverberado em todo o país. Qualquer tentativa de amenização será absolutamente inútil.
Resta, aos que podem, seguir cada etapa do processo de recuperação ajudando como possível. E são várias. Do material ao afetivo. Casas, identidades, empregos, famílias, sonhos, cidades. Um estado. Vidas.
E é por conta desta catástrofe – política e com culpados evidentes – causada por elementos de uma surrada e agonizante natureza, que escrevo. Este texto é sobre futebol e para quem o ama.
É preciso parar.
De tempos em tempos, a discussão sobre paralisar ou não um campeonato acontece na América do Sul e os motivos são diversos.
No Equador, com o país à beira de uma guerra civil, não parou.
A final da Libertadores de 2018, entre River e Boca, mesmo após cenas lamentáveis de violência de torcida contra jogadores, aconteceu.
Em Madrid, como prova de que não há distância que “a força da grana que ergue e destrói coisas belas” não possa cobrir para que o show não pare.
O maior caso das gerações contemporâneas é, sem dúvida, a pandemia da Covid-19, chegada ao Brasil no primeiro trimestre de 2020 e ainda não bem superada – ao menos as suas sequelas, não.
E que show de horrores assistimos, sobretudo do meu time, o Flamengo, buscando forçar uma volta completamente descabida. Ou seja, há um preço para parar ou não e há quem defina os valores. O futebol é parável. E, outra vez…
É preciso parar.
Há de se ressaltar que esta não é uma decisão simples, mas é preciso que alguém tenha a coragem de tomá-la. Não será a CBF. Nunca é a CBF, o país que segue dando errado. São tantas as variáveis, compreende-se. Tantos trabalhadores da bola que não são vistos pelas câmeras, como ropeiros, cozinheiros, seguranças etc. Ou até mesmo tantos outros “pés-de-obra” que não defendem os maiores times do país, mas divisões inferiores com investimentos precários.
Parar seria deixar desamparada a vasta maioria dos que dependem do futebol. Recursos podem ser angariados para ajudar na reconstrução dos irmãos gaúchos se o futebol continuar. Eu sei. Não vou entrar no debate sobre o que é “justo”. “Ah, a vida não pode parar”, dizem alguns.
Contudo, é evidente que não seria justo que uma equipe sem treinamento, com amigos desaparecidos, jogasse normalmente. É como exigir que estejam apartados de sua humanidade e envolvimento emocional diante de uma tragédia. Não se trata de parar toda a vida ou não. O futebol não pode estar alheio ao povo. O futebol é feito do povo. Para o povo.
É preciso parar.
Primeiro, porque se o futebol é do povo e para o povo, é o povo quem dá sentido para o certame. Sem as torcidas ostentando as cores que melhor definem a sua identidade, cantando os hinos da sua verdadeira pátria e empurrando os soldados em campo, remanejados que foram para uma outra batalha, de vida e morte, como jogar futebol?
Seria mais um golpe por parte daqueles que insistem em descaracterizar o futebol, vendendo, quase literalmente, a própria alma em nome de suposta grandeza a se atingir. Em outra casa? Diante de outras cores? Longe do povo, que permanece em sofrimento? Isto não é futebol.
Não podemos permanecer alheios a essência do futebol porque “o show não pode parar”. Pode. Deve. Precisa. Pra que continue havendo sentido no futebol para além de SAF’s, patrocínios e movimentações financeiras. Continuar, agora, é carimbar que o futebol não é mais sobre pessoas, mas sobre royalties.
Depois, é preciso parar porque são homens e mulheres, não robôs, em campo, preocupados com a família, com os amigos, conterrâneos. Pessoas. A privação do luto é das mais cruéis ditaduras.
Como pedir que joguem uma partida de futebol os que ainda não encontraram queridos desaparecidos? Ou os que ainda não recuperaram itens básicos de vida e estão dependendo da ajuda de terceiros? Teremos coragem de pedir que direcionem suas atenções para algo outro que não a busca pela reconstrução de cada pequena nuance de suas vidas anteriores que foi levada pela água? Isso demora. Se demora, precisa de tempo.
É preciso parar.
Eu não estou dizendo que por tempo indeterminado, mas, no momento, mesmo as opiniões mais técnicas são obstruídas por água e lama. É preciso, pelo menos, um tempo de concentração total em ajuda humanitária e contenção de danos, para que uma nova avaliação seja feita em seguida e uma nova medida adequada seja tomada.
Hoje, é um dia de cada vez. As águas ainda estão longe de baixar.
Em 1941, a pior enchente do estado até então, foram necessários 32 dias para o início da avaliação em terra firme. As previsões apontam para mais dias de chuva e intensificação do frio. Ainda há pessoas a serem retiradas de áreas de risco. São estes que necessitam de amparo no momento. Não a bola.
Não tenho as respostas para todas as facetas desse caos. Mas, por solidariedade aos que têm no futebol a sua razão de existir e não podem se dedicar a nada além de permanecer existindo…
É preciso parar!