Dizer que a década de 1970 foi a melhor da minha vida, seria menosprezo a que vivo hoje. No entanto, a referência é necessária para que se faça lembrar-se do que me foi narrado pelo Seu Vadinho.
Custamos, confesso, a encher o saco com mariscos machadinha, escolhidos um a um, no costão da Ilha de Terra. Tínhamos máscaras de mergulho, pés-de-pato, cavadeira curta e a boia com rede para a coleta destes maravilhosos mariscos. Apoitada no portinho, a batera esperava, dançando ao sabor das ondas. Horas sem conta e o resultado foi marcação da linha d’água coberto pelo peso. Mais um pouco na limpa e a volta tão merecida.Guardei um saco amarrado em fieira e bem preso numa grota de pedra encostada da pedra do Alemão. Seria consumido à noite com os amigos de sempre, (outro dia escreverei sobre eles). Passaram-se as horas em prática do surfe, mas, sempre um olhar para a ‘pedra geladeira’. Sete horas: cato lenhas e aprumo as pedras. O panelaço apoiado recebia os mariscos dá forma tradicional: marisco, água e sal. Não! Bom, só acrescentei o arroz, a tampa, e era só esperar que o cheiro chamasse os amigos.Engraçado, os famintos sempre chegam primeiro. Sabendo que ainda levará algum tempo para ficar pronto, esta espera foi abençoada pela chegada do Seu Vadinho. Desta vez, ele trouxe uma garrafa de pinga “para o molho”, dizia ele. Milagre ou advertência? Não sei.Retiro a tampa, mexo o rango com a colher de pau, coloco um copo de cana na mistura e pela primeira vez provo da água ardente, que de fato arde. Quase pronto, coloco os temperos: cebolinha verde, salsinha, só para dar um verde na mistura. Beira de praia não requer sutileza no preparo, mas o orgulho pede esmero na refazenda.Espalho os pratos de barro conforme o número de bocas. Talheres, como minha mãe não permitia o uso dos dela, fiz conforme manda a criatividade: lascas de bambu raspadas e lixadas, colheres especiais para o evento. Os mais velhos se servem primeiro. Seu Vadinho abre um sorriso e solta pigarro, dá um gole largo na cachaça, olha cada um como busca pela atenção e solta a voz…- Vocês sabem que esta praia tem mistérios, não que eu tenha visto, mas me contaram quando criança. Não sei bem quando, mas, lembro como me contaram. Acho que foi o Gercino, avô do Dario, quem me contou. Houve uma festa lá no Itapirubá, destas de Igreja, comida, bebida, baile e muita diversão. Pois bem, fretaram um caminhão, subiram e foram admirando a praia. Para atravessar a barra do Araçá, tinha que ter perícia. Folia feita pelo intento alcançado, tapas no teto da cabine, alegria e orgulho do motorista caolho, risadas e apelidos criados no momento e que ficaram para toda vida.Já descer da carroceria foi mais engraçado, pois esqueceram a escada. Os homens saltaram, alguns de bunda na areia, outros como gatos, de pé. As mulheres com seus vestidos de festa tiveram seus segredos descobertos, e depois propagados nas fofocas de bar. Não sei se vocês sabem, mas homem fofoca mais que mulher. Daí veio à expressão “Apareceu a Margarida”.Gercino com sua esposa Maria, livre dos filhos, buscavam diversão. Correram às barraquinhas montadas ao largo da Igreja, no campo do Boa Vista. Música promovida pela banda daqui, a dança corria solta, e assim ficaram por horas. Maria, cansada, resolveu ir à casa de um parente dali mesmo. Gercino ficou na festa com seus outros amigos e como era de brincar com as pessoas, ficou pregando peças. A noite alta chamou cada um pelo cansaço e a volta estava perto. Maria, a do Gercino, acabou dormindo e ele então resolve vir a pé. Provavelmente Maria viria de aranha com seus parentes no outro dia. Gercino desviou-se do caminhão pegando uma trilha pela restinga e quando chegou à praia, o caminhão já fazia a curva de meia praia. Nada se podia fazer, “o tiro saiu pela culatra”, dizia a si mesmo. Caminhando e contando os passos, criava histórias para depois fazer a alegria das crianças da Praia de Baixo.De repente, Gercino vê diante de si uma luz amarela esverdeada, que foi crescendo e tomando a forma de uma grande “tampa” (não vinha na mente outra palavra para descrever). Correr não podia, pois suas pernas ficaram tremendo e grudavam na areia. As ondas começaram a recuar e fazer um barulho estranho. Uma luminosidade amarelada tomou conta destas, que pareciam ferver.
Rezar não adiantava. Gercino não era dado às rezas, dizia. Mas 100 Pai Nosso recitou no embaraço da voz, embargada pelo medo. Aquela “tampa” foi vindo à direção dele, cada vez mais perto e ele travado. Até que passou por ele… Gercino gritou, é claro, mas sua voz saia como o som de um pistão cheio de saliva, soava xoxo, ele via mil cores distintas se misturando onde era o céu. O mar era de vermelho para o amarelo e assim, num piscar de olhos, não mais via o porto com seu farol, nem as luzes de Imbituba. Naquele amarelinho piscante dos 110 volts, sua memória foi afetada, queria lembrar-se da família e nada vinha à mente.O tempo pareceu parar naquele turbilhão de luzes e sons, imagens difusas, alucinação, tempo, tudo era infinito. Outro de repente, um som de vento em floresta seca veio crescendo, passou por ele arrepiando cabelos, gelando a coluna. Gercino via nesta nova projeção de imagens que estava dentro de uma grande sala. Onde antes era areia, agora era de um material liso e branco como cal. As paredes circulares e um teto em abóboda giravam cada um em uma direção distinta entre si. – Como vou sair daqui – pensava Gercino em voz alta, mas a voz não saía e, sim, só a mente exprimia sua vontade.Vocês devem entender que naquele tempo não se falava de disco voador, essas coisas de outro mundo. Gercino estava, creio eu, achando que tinha morrido e vagava pelo céu de algum lugar. Queria voltar, sentia que não era sua hora. Fazia força para entender o que lhe acontecia. Houve um estrondo, tipo assim, de rojão e as luzes começaram a se misturar e tudo ficou branco luminoso. Gercino ficou tonto, e caiu, caiu, caiu, sentiu folhas estralarem e galhos dobrarem, e o solo veio como abraço duro, desmaiado, permaneceu neste limbo de mato e escuridão. Aos poucos abriu os olhos e viu só mato a sua volta. Uma pedra a poucos metros e nela aquele cacto dama da noite, espinhoso que só por milagre não caiu por cima dele. Olhou de um lado para o outro e com os braços foi abrindo caminho. Mais de hora nesse processo e, enfim, consegue ver com mais clareza, embora ainda não soubesse onde estava. Sentou na base de uma raiz de araçá goiaba. Sabia por que um fruto lhe caiu na cabeça. Ele ainda falou:- Ainda bem que vaca não dá em árvore. Pegou seu canivete e um toco de fumo forte; picou na palma da mão, enrolou na palha de milho antes afinada com a lâmina do canivete. Buscou o fósforo e riscou na lixa o palito. Puxa a fumaça e solta um peido. “Fumo forte”, ri de si. Ouve vozes, não reconhece a língua, se vê perdido novamente. Um grupo de pessoas passa numa estrada a uns 10 metros dele conversando naquela língua estranha. “Mas, são iguais a mim”, dizia Gercino para si. “Onde diabos estou, o que é que estou fazendo neste mato?”