Nesse tempo de calor infernal, lembrar do Sagrado é um pedido de alento no frescor do fim do dia. As cores do dia eram diferentes, eram na visão de um guri de dez anos, mais vivas.
Acordei naquela manhã de dezembro, meio acanhado, um céu cinza, nublado, abafado até. A porta do rancho aberta no todo mostrava um mar sereno e sem ondas, volto à mesa, café de boião e pão caseiro, sirvo-me com a magistratura de um faminto e recebo a ordem. Minha mãe logo me mandou tomar um banho, o que se referia ir à beirada do poço com um balde, no esforço de um magrelo recolher a corda no gemido da pouca idade, colocá-lo na pedra ao lado e de uma vez derramar a água sobre o corpo.
Espernear e soltar gritos ao receber a água fria, tudo bem; fiz um escândalo, até aí normal para a idade. O sabão de barra, cabelo desgrenhado em cachos duros, o corpo fino em espuma esperando o próximo balde. Banho tomado; voltei ao rancho.
– Olha! Hoje tem procissão, então nada de fugir pra ilha e nem de ficar no mato até tarde, entendeu? Falou docemente minha mãe.
– Sim senhora! E sou acaso louco de dizer qualquer coisa do contrário? Pensei o mais baixinho possível… Eu Hem…
Uma coisa foi criada na cabeça de bagre de um guri, (neste caso, eu).
– Mãe, que hora será a procissão?
– Às cinco! Por quê?
O olhar dela foi como o de uma águia buscando a presa, sabe quando se percebe que a pergunta feita num dia de estresse pode dar de retorno? Foi assim.
Meu pai entra e me dá um cascudo na cabeça, um carinho, pergunta se eu quero ir com ele na ilha de fora recolher a rede.
Eu olho para minha mãe, depois para meu pai, retorno a olhar para minha mãe e quando vou dizer que não daria porque tomei banho as oito da manhã para ir a uma procissão às cinco da tarde. “Hum”, minha mãe falou.
– Olha não estou boa hoje (o que é diferente de não estou bem hoje), pode ir, mas volta em tempo de ir à procissão, e completou… Tá ouvindo Bina?
Meu pai olhou para mim e depois para minha mãe e sorriu, há isto irritava mais ainda, resolvi sair de fininho.
O que aconteceu nesta fugida até a ilha de fora será um caso para outra hora.
Sei que chegamos às três da tarde, com tempo suficiente pra outro banho, um café e ir de Kombi até o centro com meu pai.
Sabe quando você é endereçado para um lugar, deixado à porta e de repente você percebe que está só? Foi isto que aconteceu, minha memória não mostra nem meu pai ou mãe nesta aventura. O que fazer?
Bom! Pensei, escolho uma senhora qualquer e o que ela fizer eu faço, ô arrependimento, credo. Tinha que ser uma senhora carola?
Eu não era um guri religioso. A senhora foi até a pia de água benta, molha os dedos e faz o sinal da Cruz. Faço o mesmo, mas não naquela perfeição, digamos que desenhei uma mandala entre cabeça e peito, muito longe de ser comprado ao sinal da Cruz.
Sigo os passos dela, e passa banco e a senhora não entra e nem senta, segue adiante, mais bancos são ultrapassados, deixados de lado, e eu atrás da senhora. Enfim, lá na frente ela resolve sentar. Quando vou entrar ela gentilmente me olha e fuzila com o olhar:
– Sente-se aí atrás, guri. Aqui é para nós.
Percebi uma fileira de senhoras com véu e rosário nas mãos, vi que murmuravam alguma coisa, não ouvi, não posso dizer o que falavam tão silenciosamente. Busquei o banco referido e sentei.
Esperei o que deveria esperar; a procissão, mas veio o Padre, e falou, contou histórias de Cristo, o que me agradou muito por sinal, o que não agradou foi tal de senta e levanta, senta e levanta. Cada vez que levantava eu pensava agora vem à procissão e nada, que agonia.
Neste senta e levanta, ouve, senta; eu acabei batendo com o joelho naquele banquinho para ajoelhar, não sei por que me lembrei da minha professora que na última sexta feira de aula, sem motivo aparente, após eu ter puxado o cabelo de uma coleguinha de sala, fez com que ficasse alguns minutos de joelhos no milho, nada grave 300 minutos.
Volto minha atenção para a missa, mão esfregando o joelho, a paciência esgotada, Deus me livre se não vou à procissão.
Acaba a missa, o Padre convida a todos para a procissão, abri um sorriso tão largo que o senhor do meu lado olhou para mim desconfiado, até hoje não sei que desconfiança teve.
Percebo que nestas horas devo seguir a multidão, e sair da igreja sempre foi um risco, todos querem sair ao mesmo tempo, eu um magrelo era empurrado de um lado para o outro nem fiz esforço para chegar à rua, foi um alívio.
As pessoas formavam seis filas, como um pelotão de sete de setembro. Segui a massa, fiquei na segunda fila no comprido e na décima oitava de lateral. Até ali foi com a ajuda dos braços dos outros e não por minha vontade. Acabei na lateral, um guri maior que pela aparência deveria ser parente do Cleber Latrônico, sorria satisfeito.
Só descobri o significado daquele sorriso algum tempo depois quando começamos a caminhar.
Centuriões tomavam conta do alinhamento, vestidos a caráter, com as lanças e os escudos, vinham alinhando a fila externa enquanto caminhávamos, tinha que acontecer comigo, um deles que não gravei a fisionomia, talvez para não dar uma pedrada depois, chacoalha aquele escudo e o danado soa como um trovão bem do meu lado , que susto, fui parar na terceira fila e o guri do sorriso largo lá da ponta se curvava de rir. Palhaço!
Segui a massa, segui meus primeiros passos na espiritualidade, digamos mais para quase isso; parávamos e seguíamos a caminhada que percorreu o centro e voltou à Igreja.
Hoje refiz os mesmos passos, li os nomes das ruas. Fiz desenho e percebi que aquela procissão fez um oito, entre os quarteirões da Igreja e o do centro, passando pela Nereu Ramos, voltando pela João Rimsa, contornando a praça e finalizando na Matriz. Um rosário no formato de um oito.
Sentado num banco da praça, fui relembrando minha aventura de guri, sei que sai vivo desta procissão e segui para o canto da praia louco para tirar aquela calça curta com suspensórios, colocar um calção feito por minha mãe e ir dar um mergulho, ledo engano de pensamento.
Minha mãe esperava com um bom jantar, pirão de feijão num prato de barro, arroz e marimbá frito…
– Senta aqui e conta pra mãe como foi, gostou né?
Meu pai sentou do meu lado, e enquanto contava minha façanha eles riam e se curvavam, é sempre assim desgraça alheia é piada gostosa para si, sei que pela maneira que descrevi quem sabe se tornou hilário, no fundo ecoava em mim a história de Cristo que o Padre contou.
Liberado do depoimento; fui até a beira da praia e fiquei olhando as ondas que, com ardentia, sorriam para mim a cada quebra.
Entre bons e maus pensamentos, que dó não ter gravado a cara daquele centurião, até a pedra sei onde buscar.
Que pena!
Com 45 anos dedicados a criação de histórias e a produção de livros, Dario Cabral da Silva Neto, de 60 anos escreve poesias e se dedica ao desenvolvimento de romances. Dos 20 títulos já escritos, oito foram publicados.
Entre 1973 e 2000, Dario era, exclusivamente, poeta, mas em 2000, decidiu se transformar em romancista. Entre as surpreendentes obras, que são vendidas por R$ 30, estão os clássicos Catador de Sonhos, Uma Questão de Amor, A Ravina, Pétalas de Amor, O Segredo de Melissa e a Caminhada do Zé Mundão.
Os livros escritos por Dario não tem um foco religioso, mas trazem mensagens espiritualizadas.
Para adquirir as obras de Dario basta realizar contato com o escritor pelo Messenger do Facebook (in box) ou pelo telefone (48) 999378198.