Em 1981, cartazes espalhados pelo Recife anunciando uma missa foram vandalizados.Havia no ar o temor de que a Igreja do Carmo, na capital pernambucana, fosse intencionalmente explodida. Até mesmo o Vaticano se colocou contra a missa. Afinal, como um evento religioso conseguiu se tornou tão polêmico? Durante a ditadura militar (1964-1985), na noite de 22 de novembro de 1981, a chamada Missa dos Quilombos reuniu católicos progressistas, o cantor Milton Nascimento e o poeta e político de esquerda Pedro Tierra no mesmo lugar onde a cabeça do líder quilombola Zumbi dos Palmares foi exibida depois de sua execução, em 20 de novembro de 1695 — 330 anos atrás.
A missa foi o primeiro grande evento público para celebrar a Consciência Negra, contribuindo para que se tornasse feriado nacional.Artisticamente, teve poesia e música de alta qualidade.Religiosamente, era uma celebração católica — contudo, incorporando referências afro, de uma maneira que ainda não era plenamente aceita pelo Vaticano naquela época.
Politicamente, foi uma afronta: denunciava as consequências sociais da escravidão e escancarava preconceitos, além de exaltar a luta quilombola.”Ao denunciar a existência do racismo no Brasil, a Missa dos Quilombos afrontava o discurso oficial do regime militar sustentado no mito da democracia racial”, explica à BBC News Brasil o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Politicamente, foi uma afronta: denunciava as consequências sociais da escravidão e escancarava preconceitos, além de exaltar a luta quilombola.”Ao denunciar a existência do racismo no Brasil, a Missa dos Quilombos afrontava o discurso oficial do regime militar sustentado no mito da democracia racial”, explica à BBC News Brasil o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS).
“Além disso, a afronta era intensificada com a presença de um ex-membro Ação Libertadora Nacional [principal organização de luta armada contra a ditadura, atuou de 1968 a 1974] e ex-preso político do governo ditatorial como um dos seus coautores, no caso o poeta Pedro Tierra.”
Cerca de 6 mil pessoas se apinharam no Pátio do Carmo, no centro da capital pernambucana, para acompanhar a missa. O evento teve repercussão nacional.
“Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. […] Problema de negro acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos, com todos os absurdos contra a humanidade, com todas as injustiças e opressões”, recitou o então arcebispo de Recife, Hélder Câmara (1909-1999).
Perseguido pela ditadura e chamado pejorativamente de “comunista de batina” e “bispo vermelho”, Câmara cobrou que a Igreja Católica não ficasse apenas “em palavra” — partindo para a ação.
“Claro que dirão […] que é política, que é subversão, que é comunismo”, disse o arcebispo, defendendo que seguia o evangelho de Cristo.
Segundo o sociólogo Charlisson Silva de Andrade, também professor na UFS, há documentos confidenciais da época, hoje disponibilizados pelo Arquivo Nacional, com evidências de que o evento em Recife e seus organizadores foram monitorados pelos militares.
Por trás, a Teologia da Libertação
Crédito,A ideia da celebração começou a ser desenvolvida dois anos antes por dois religiosos que estavam entre os principais nomes da Teologia da Libertação no Brasil: Hélder Câmara e seu colega Pedro Casaldáliga (1928-2020), bispo de São Félix do Araguaia (MT).
Corrente cristã surgida entre os anos 1960 e 1970, a Teologia da Libertação incomodava por conta de sua interpretação do evangelho como resposta à pobreza e a injustiça social — a partir da ótica dos oprimidos e promovendo luta por justiça social e dignidade humana.
O movimento sempre foi visto como “de esquerda” e, não raras vezes, motivo de controvérsia até mesmo dentro da Igreja Católica.
Os dois religiosos convidaram o já renomado Milton Nascimento para a empreitada.
“Prontamente, Milton aceitou o convite, motivado pela admiração que já nutria pelo trabalho pastoral e poético de Casaldáliga e pela temática centrada no negro”, afirma Domingues.
“Ou seja, a conjunção entre antirracismo e ressignificação do cristianismo num viés progressista animaram o cantor e compositor.”
A ideia seria que Casaldáliga compusesse as letras dos cânticos e o texto-base para a missa. Ao artista, caberia a composição musical.
“Modéstia à parte, vamos fazer a melhor coisa do mundo”, escreveu Milton Nascimento ao bispo, na época.
Em seguida, uniu-se ao projeto o poeta goiano Pedro Tierra, pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva, que havia sido preso pela ditadura no início dos anos 1970.
Naquele momento, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vinha defendendo trazer a Igreja Católica para o debate racial.
A CNBB incentivava padres a abordarem questões como preconceito racial em suas paróquias e comunidades e esteve entre os apoiadores da formação do Movimento da União e Consciência Negra, núcleo de religiosos e leigos negros que militavam no então incipiente movimento negro brasileiro.
Durante a ditadura, a CNBB foi um dos organismos da sociedade civil que se colocaram como resistência ao regime ditatorial, sobretudo pela influência de nomes como Hélder Câmara e o cardeal arcebispo Paulo Evaristo Arns (1921-2016), entre outros.
Ainda em 1980, ficou definido que a missa seria celebrada por José Maria Pires (1919-2017), bispo da Paraíba e naquela época o único bispo negro do país — quando morreu, aos 98 anos, era o bispo mais idoso dentre os que viviam no Brasil.
Na celebração, ele usou uma batina especial, com cores e motivos africanos.
Antes apelidado de “dom Pelé”, tomou para si a alcunha de “dom Zumbi” depois desse projeto — demonstrando seu vínculo com a causa negra.

Crédito,Reprodução/Acervo Pessoal de Petrônio Domingues e Charlisson de Andrade
Legenda da foto,O evento levaria ainda um ano para sair do papel, em grande parte por conta da agenda atribulada de Milton.
Em um artigo acadêmico publicado este ano na revista Afro-Ásia, os pesquisadores Petrônio Domingues e Charlisson Silva de Andrade afirmaram que Milton, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra compuseram a missa a partir de uma pesquisa sobre a escravidão.
O objetivo deles foi criar um “poema litúrgico” sobre a “ambivalência (tragédia e esperança) que constitui o ‘martírio’ do povo negro na América”, dizem os pesquisadores.
À Folha de S. Paulo, alguns dias antes da missa, Casaldáliga declarou que a Igreja Católica havia participado da escravidão — não só como cúmplice, mas também como instituição proprietária de pessoas escravizadas.
Na véspera do evento, cinco mil cartazes divulgando o evento foram espalhados por Recife.
O símbolo do projeto aparecia neles: era um mão negra segurando uma cruz, sobre um fundo vermelho.
Conforme apontam os pesquisadores Domingues e Andrade, muitos deles foram vandalizados por opositores da missa.
Com spray de tinta preta, a cruz foi transformada em foice, em uma referência ao símbolo comumente usado por comunistas.
Segundo o artigo, o núcleo de opositores do evento era formado por membros do Comando de Caça ao Comunistas (CCC), organização de direita radical que atuava no país.
Na época, houve relatos de que críticos ao evento planejavam explodir a Igreja do Carmo na véspera da celebração — o que é hoje endossado por pesquisadores.
Em um documentário produzido em 2009 pela Universidade Católica de Pernambuco, o próprio Milton Nascimento relatou que houve ameaças de bomba.
Fotos publicadas em jornais da época também mostram muros pichados com frases como “Abaixo a Missa Vermelha” e “Cristo sim, Casaldáliga não”.
O bispo José Maria Pires criticou, na homilia, a ausência de pessoas negras em cargos decisórios, inclusive no comando da Igreja Católica.

Crédito,Reprodução/ Acervo Pessoal de Petrônio Domingues e Charlisson de Andrade
Legenda da foto,Em 90 minutos da celebração, houve a apresentação de 11 canções de cunho litúrgico, todas cantadas por Milton Nascimento e um coro de 15 pessoas de Minas Gerais, formado por ele.
Milton participou da composição da maioria dessas faixas, com exceção daquelas de tradição popular, com origem no folclore afrobrasileiro e na cultura do povo caiapó.
A temática social perpassa todo o repertório.
Em A de Ó (Estamos Chegando), por exemplo, canta-se que “dos novos Palmares nós somos, viemos lutar”.
Na canção Ofertório, dedicada a esse momento específico de uma missa, entoa-se: “Com a força dos braços lavramos a terra, cortamos a cana, amarga doçura na mesa dos brancos.”
“Cavamos a terra, colhemos o ouro que hoje recobre a igreja dos brancos.”
“Plantamos na terra o negro café, perene alimento do lucro dos branco.”.
Em Nome do Deus lembra que Jesus “nasceu moreno” e evoca Xangô, orixá considerado responsável pela justiça na espiritualidade iorubá.
Não há relatos de violência durante a celebração, apesar do clima de tensão política.
Segundo o jornal Diário de Pernambuco registrou, houve distribuição de panfletos difamando os religiosos Câmara e Pires durante a missa.
“A Missa dos Quilombos aconteceu em um dos momentos mais delicados da ditadura militar, no início dos anos 1980, quando o regime ainda mantinha vigilância e censura, mesmo sob o discurso de abertura”, contextualiza à BBC News Brasil o escritor e palestrante Alê Garcia, autor do livro Negros Gigantes.

Crédito,Getty Images
Legenda da foto,Vaticano reprime projeto
Depois, Milton Nascimento transformaria o projeto em disco.
Missa dos Quilombos, o álbum, foi gravado em março de 1982.
O repertório trazia as músicas da celebração de 1981.
Mas tudo foi gravado em outra ocasião: ao vivo na Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, no Santuário do Caraça, cidade de Catas Alta (MG).
Algumas locuções incluídas na gravação, como a oração Invocação à Mariama, de Câmara, foram recuperadas do evento original.
Dentro da Igreja Católica, o evento seguia sendo visto como algo “de inspiração marxista” e era alvo de dissenso interno.
Em julho de 1982, tornou-se pública a notícia de que o Vaticano enviou duas cartas à CNBB reprovando a iniciativa — tudo indica que após o evento ocorrer.
Assinadas pelo então prefeito da Congregação para o Culto Divino, o mais tarde cardeal Giuseppe Casoria (1908-2001), as reprimendas enfatizavam que era inconcebível que uma missa incluísse reivindicações de qualquer “grupo humano ou racial”.
A Congregação para o Culto Divino, atualmente chamada de Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, é uma das pastas da cúpula do Vaticano.
Cada um desses órgãos é incumbido de zelar por uma questão da Igreja — no caso deste, é responsável por garantir que a liturgia seja respeitada.
Cada dicastério tem um prefeito, nomeado diretamente pelo papa.
A missiva oficial assinada por Casoria determinava que a CNBB se encarregasse de não mais permitir no futuro “atos semelhantes à chamada Missa dos Quilombos”.
“A missa denunciava o passado escravista do Brasil como pecado histórico e fazia a memória dos povos africanos como memória martirial, algo incomum na liturgia oficial até então”, analisa o escritor e músico Rafael Senra, professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap).
“Para setores conservadores, isso politizava a eucaristia, transformando a liturgia em ato ideológico. O uso de tambores, expressões corporais e elementos da cultura afro-brasileira foi visto por críticas conservadoras como sincretismo impróprio e desvio litúrgico”
O professor avalia que o evento assumiu um posicionamento claro: “a opção preferencial pelos pobres e contra a opressão racial”.
“Isso trouxe a missa diretamente para o centro da disputa ideológica”, contextualiza.
Cabe ressaltar que o entendimento da cúpula católica mudou sobre esse tipo de celebração. Desde o Segundo Concílio Vaticano (1962 a 1965), passou a haver uma maior abertura à incorporação de realidades locais ou regionais às práticas católicas.
Com o pontificado de Francisco (1936-2025), isso foi ainda mais incentivado — o que tornou-se nítido no Sínodo dos Bispos para a Amazônia, realizado em 2018 no Vaticano, no qual muitos elementos indígenas fizeram parte dos ritos litúrgicos.
Ainda não há posicionamentos explícitos do Papa Leão 14 sobre essa questão, mas é de se esperar uma postura semelhante à de Francisco, em parte pela sua experiência pastoral, tendo vivido 40 anos no Peru.
Repercussões da Missa de 1981
/ Missa dos Quilombos chegou a ter outras apresentações e adaptações.
A mais relevante delas foi a de 1995, para celebrar os 300 anos da morte de Zumbi. Participaram 20 mil pessoas.
Foi a única vez que ela foi realizada dentro de um templo católico — e não em uma igreja comum, mas sim no Santuário Nacional de Aparecida, a basílica mais importante do país.
Na ocasião, o evento religioso encerrou uma caminhada política de dez dias organizada pelo sindicalista Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, então presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Os participantes caminharam por 227 km, buscando atrair a atenção para a existência de trabalho análogo à escravidão no Brasil contemporâneo.
Milton Nascimento, claro, repetiu sua participação.
Para os entrevistados, a missa de 1981 contribuiu para consolidar o Dia da Consciência Negra no 20 de novembro.
A ideia de celebrar a data veio do Grupo Palmares, movimento negro de Porto Alegre, no início dos anos 1970.
Em 1978, o então Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial incorporou a efeméride. Foi quando o 20 de novembro passou a ganhar capilaridade nacional.
“Um evento de grande proporção e de repercussão nacional, como foi a Missa dos Quilombos, foi fundamental para a ascensão da celebração na memória do povo brasileiro”, comenta o sociólogo Charlisson Silva de Andrade.
Dois anos atrás, em 2023, o Dia da Consciência Negra se tornou feriado nacional.
“A Missa [dos Quilombos] não foi a origem da [instituição da] data, mas foi determinante para projetá-la e consolidá-la no debate público”, concorda o escritor Alê Garcia.










