Da decadência humana (ou “O que a Bola de Ouro e a selvageria de criminosos organizados têm em comum”)
Quando as primeiras notícias que apontavam, durante a manhã desta segunda-feira (28), para a não premiação de Vini Jr. com a Bola de Ouro referente a temporada de 23/24, fui imediatamente transportado para os tempos de menino e a brincadeira de bola na praia, na rua, nos estádios de esquina – que não existiam, mas nós inventávamos. Todos nós sonhávamos em ser o melhor do mundo.
Este texto não é sobre números. Eu não quero escrever sobre números. Aliás, eu não gosto e nem sei nada de números. “Números, sob tortura”, diria Lúcio de Castro, “dizem qualquer coisa”. Eu gosto de falar de afeto. E, por isso, eu falo de futebol. Sobre os porquês que evidenciam Vini Jr. como o melhor jogador do mundo, em números, é possível encontrar em outras colunas ou em uma pesquisa no Google.
Este texto é sobre a razão de não ter sido Vini Jr. o escolhido como melhor do mundo.
É bem possível que valorizemos para além do lógico um prêmio individual em um esporte coletivo. Não se fala tanto assim neste título em outros modalidades do gênero. Mas todo garoto que um dia se viu jogando com a camisa do seu próprio clube, tendo realizado este sonho ou não, fantasiou para si essa glória. Vini Jr. fez por onde. Na era da meritocracia de goela e discursos vazios sobre o verdadeiro lugar do esforço em um sistema que absolve sobrenomes, mas é juiz e carrasco de cores e amores, curiosamente apagam-se números e méritos em nome do indizível e injustificável.
Não existe resposta para a escolha de Rodri – um excelente jogador e que merece estar entre os melhores do mundo – ao invés de Vini Jr. como o melhor jogador da temporada que não passe pela luta do brasileiro contra o racismo. Sobretudo na Espanha, embora não apenas lá. Em todo lugar. São necessários 30 segundos de pesquisa para encontrar uma variedade de manifestações racistas, vocais e gestuais, nos estádios de futebol da Espanha, embora não apenas lá.
Vini escolheu confrontar, quase personificando em si toda a luta antirracista, um problema não espanhol, mas humano.
José Trajano disse, revoltado com a emboscada preparada por torcedores da Mancha Verde, torcida organizada do Palmeiras, que nega envolvimento no caso e alega “ações isoladas”, contra membros da Máfia Azul, do Cruzeiro, que deixou um homem morto e mais de uma dezena de feridos: “A humanidade não deu certo”. E, horas depois, outra prova contundente que depõe contra a humanidade.
Sobre uma disputa decidida pela votação de terceiros, o jornalista Miguel Sanz, em texto publicado pelo Sport, veículo de imprensa catalão, escreveu que Rodri venceu a “bola de ouro dos valores”, e repreendeu Vini Jr. com o que ele chama de lição: “aqui, não vale apenas ganhar e marcar gols”. Um triste fim para a meritocracia e um aceno ao primitivismo social. Os valores que a Espanha parece semana após semana reforçar por meio de suas torcidas são os mesmos que queremos estabelecer como padrão e legado para o futuro, se houver futuro?
O futebol, virado em negócio, SAFs e centralização do poder, se desconectou de sua origem artística, periférica e transgressora. Se esvaiu de sua identidade e deixou de ser o que Darcy Ribeiro um dia definiu como “a verdadeira pátria do brasileiro”. Perdeu a capacidade de reconhecer a sua essência mesmo quando encarnada diante dos olhos, independente de suas origens e lutas – que um dia serviram como fator definidor na construção da idolatria e, hoje, parecem impedi-la (quanto mais Neymar, melhor) – e se tornou o que de pior podia ser: conservador.
Violento, careta, absolutamente ganancioso e sem alma. Vini Jr. é um constante lembrete do que o futebol era para ser, um dia foi, até que o sufocaram ao que vemos hoje.
O que os bárbaros criminosos fizeram em São Paulo, queimando ônibus e atacando violentamente membros da torcida rival, em retaliação à ataque sofrido em 2022, na mesma rodovia, sinaliza para a mesma morte social à qual aponta o prêmio da Bola de Ouro. Não são novidade. São exatamente o que são. Violências. Física ou emocional, violências. O que muda é que uma está presente na rotina de bandidos e outra institucionalizada no esporte que amamos.
Só o Vini Jr. pode saber a dor do que viveu hoje. Ele não precisa do prêmio, mesmo que mereça. Mas confesso que torcia por essa dose de esperança. Uma pequena perspectiva que fosse. Tomamos outra paulada.
“Eu farei 10x se for preciso. Eles não estão preparados”. Torço para que você esteja, Vini. O futebol respira por aparelhos.