Confesso que lembrar é-me fácil, mas tem que ser da minha maneira, sem nomes, sem personagens reais, tem que ser desta forma, só assim consigo ver além da forma, além do ser normal em cada um.
Sabemos que Imbituba era repleta de engenhos de farinha, os campos arenosos propiciavam o cultivo da mandioca, o movimento do porto também; à época favorecia o plantio. Famílias com suas terras viam um nicho de mercado. Claro que havia atravessadores, e, o consumo na região era favorável.
Nas minhas andanças por Imbituba, às vezes com meu pai, noutras com amigos e em mais algumas vezes só, fizeram que meu coração fosse guardando estas imagens.
De longe, sentia o cheiro da farinha torrada, criava coragem e ia me chegando, de mansinho, um café com biju, cuscuz, ou até mesmo um punhado de farinha com açúcar servia para matar o desejo.
O tempo foi passando, a exportação caiu, o consumo caiu, as famílias venderam as terras, os engenhos ruídos e abandonados aos poucos foram desmontados e vendidos para os turistas; novos donos das terras, para enfeitar jardins, salões de pousadas, portões de sítios.
Nos campos arenosos entre as vassouras, todas as história desta cultura ficaram nas conversas da descasca da mandioca, nas lágrimas dos antigos, a saudade das juntas de bois, cujos nomes ainda são lembrados: “barroso”, “malhado”, “cocão”, “mocho” e por aí afora.
Lembro-me deste passado; minhas primeiras linhas em poesia; lembro-me dos rostos acanhados das moças, dos olhares duros dos pais, das facas afiadas chiando na pedra, seguidas de muitos olhares provocadores, (risos) era um tempo bom…
Então lembro que seria um ótimo momento para refletir…
Muitas Marias sentadas na descasca da mandioca, pernas à mostra, brancas pernas da mocidade. Balaios cheios vinham no ronco dos carros de bois, cada um num suspiro do peso aliviado. Cada olhar na provocação dos homens, o olhar retribuído das moças, os risinhos das mais velhas, as facas, nesta hora ralava com força a mandioca e a gargalhada rompia o teto e ecoava nos campos.
Marias das descascas, das pernas roliças, dos rostos salpicados de casca, dos peitos cheios e dos filhos famintos pendurados nesta trama de cascas e amamentação, o sono vindouro, um berço balaio vazio. Todas em volta da pilha crescente da rala chiam as facas ralando a casca, joga noutra pilha o feitio, era assim que via, era assim que muitas vezes me emocionava.
Maria a mais velha, poucos dentes e muitos fios de branco cabelos, lenço estampado, pernas cruzadas curtidas até as canelas, murchas nas coxas, ralando mandioca com maestria danada. Quando percebe o cansaço das mais moças, pigarreava o fumo de corda no palheiro da última safra, olhava séria para as outras e entoava as mais belas canções da rala.
Ave Maria; Bem dito é o Senhor, Lavadeira e muitas outras na voz rouca, seguida das desafinadas Marias da rala, horas passavam céleres, na cantoria da chama e do louvor.
Eu ouvia tudo no meu silêncio de observador, se sonho não sei. Ouvia e gravava os sentimentos, os olhares, ah! Os olhares… Os moços desconcertados balançavam a cabeça e saiam rindo de encontro com o campo, varas nas mãos atiçando juntas lentas nas rodas gemidas dos carros de bois.
Os pés de vassoura cobrem os campos, quem sabe orvalhados pelas lágrimas deste passado de canções de louvor na rala…
Aquelas crianças que mamavam os peitos das Marias cresceram, cresceram outras vontades, calou-se o gemido das rodas daqueles carros de bois, que o vento tanto gostava de espalhar, as telhas muitas vezes formatadas naquelas coxas brancas, escorregaram das ripas, quebraram-se ou se espalharam noutros telhados sem graça desta modernidade cruel.
O cheiro de farinha torrada, o passo da sina dos bois que faziam rodar a roda da vida dos engenhos, o café de boião chamado da folga, as coxas brancas agora lavadas, as crianças nos seios agarradas, a forma tradicional destes engenhos, vai tudo se apagando lentamente, como a névoa faz com os campos, ainda de pé observo no meu silêncio as risadas se diluindo até tudo ficar quieto.
Eu me calo, abaixo a cabeça e volto para cá, minha cabana, abro meus olhos e a lágrima faz seu curso na minha face, ainda ouço o vento triste crescendo na agonia da saudade.
Dario – 2018