O que acontece na orla de Imbituba tem explicação, é certo, cientistas podem dizer em poucas linhas, sem o olhar para dentro de cada evento. Mar e praia esticam e encolhem, movimentam-se e é sobre este movimento de águas que nossa história começa.
Há muito tempo o morro de Itapirubá perdera sua capa de vegetação. O pasto nativo por baixo dela era bom para criar as ovelhas, e tudo está quase igual como quando ainda guri.As casas eram poucas, espalhadas na planície e duas ou três no morro. As ruas em desalinho seguiam o espaço das casas, areia ou barro, eram apenas linhas disformes. Muitas vezes para ir à Laguna o melhor caminho era pela praia, maré baixa, areia dura e lisa serviam para integrar os dois municípios. Ônibus e carros menores seguiam pela praia da Vila, que na verdade é de Santana (Sant’Ana) e a Vila era referência à Vila Nova. As marcas dos pneus riscavam a faixa de areia e o vento polvilhava com areia fina e branca essas linhas, caminhos entre idas e voltas, destinos de muitos, o meu era Itapirubá. Muitas famílias de Tubarão começaram a ver neste bairro um meio de ficar próximo à praia e assim curtir o verão, verão tão diferente, tão mais agradável, temperado.
Muitos riachos davam vazão às lagoas de restinga, serpenteando conforme o vento permitia a faixa entre cômoros e a água do mar. Linhas de maçaricos e pernaltas se faziam visitantes em busca de gordura para seguir na sua migração. Quantas histórias vividas nestas linhas e marcas de pneu sobre areia branca, quantas pescarias e sonhos de amor deixados nas dunas; são estas marcas que me atraem, são estas vozes que silenciadas ao vento clamam para que conte suas sagas.Muitas vezes, é comum, esquecer fatos ocorridos num período de tempo, hoje então tudo cibernético, acelerado, não permite guardar sequer uma linha de texto, no passado a visão era nossa tela de computador e a memória arquivo gravando cada passo. Tempos bons.Eu deveria ter oito ou nove anos, seguia com meu pai na garupa de uma bicicleta, volta e meia recebia uma gota de suor na face, esforço de um para o conforto do outro, parar e seguir a pé, ou pelo vento ou pelo simples fato da observação. Creio que neste dia era pela entrada de lestada, provocando ressaca, a areia fica mole e as pernas perdem rendimento.Já estávamos além da linha de Guaiúba, faltava pouco, faltava muito para mim, faltavam pernas, faltava paciência, faltava um milagre na mente de um guri. A risada do velho era afronto para minha pouca calma; hoje, nas minhas orações, derramo lágrimas pela falta destas risadas, hoje quando caminho na mesma praia, cujas águas lavram estas linhas de pés pequenos ao lado de outros mais velhos separados pelas marcas de uma bicicleta.
Lúdica na minha visão de hoje, confusão na de um guri, uma mistura de imagens sendo preparadas para um dia gravar páginas de um livro.Meu pai bateu no meu ombro e seguimos adiante, nada mais tínhamos para ver ou fazer, o caminhão estaria salvo das águas e das areias. A curta distância para vencer foi alívio para mim. Outro grupo corria de um lado para o outro, mais pessoas se juntavam na beira de um barranco, barranco baixo, mas barranco. Com a força das águas o mar invadiu o que já era seu, e o que passou a ser dos homens, as águas seguiam forte a cada onda, forçavam caminho até se unirem com as águas da praia Grande, fazendo de Itapirubá uma ilha. Eu queria entender e o tempo me ensinou observando caminhos, observando comportamentos, aprendendo como nativo as falas do tempo, suas marcas, suas cobranças.- E agora? Fala meu pai mais para si mesmo do que para mim.Eu? Eu estava maravilhado, vendo aquele rio de água salgada seguindo célere pela rua caminho dos homens, mas na verdade já era sua muito tempo atrás.Itapirubá era uma ilha sim, sempre fora, um dia será novamente. E nas suas pastagens ovelhas pastaram calmamente entre as casas que ora se encontram dividindo espaços. Homens desesperados tentam em vão recuperar o que acham seu. Um riso silencia nas quebras das ondas que seguem caminho antigo, quando a saudade de abraço vem cobrar Itapirubá, abraço de águas, abraço de tempo.Quem sabe um dia quando as mesmas águas voltarem com saudade de ilha, mulheres vaidosas buscarão seus lenços, seus batons, seus óculos escuros e seus celulares modernos e tirarão selfies das janelas das casas, ou sentadas fazendo pose enquanto os homens se desesperam.Não sei na verdade. Só sei que o caminho de volta foi longo, mas cheio de memória, cheio de aventura, cheio de alegria na inocência de um guri. Vi como as águas lavam a praia, vi como as vaidades são distintas, vi como desespero é cego e que a ganância mais ainda, vi como faz falta; os passos de uma partida, vi como essa linha tênue é tão cheia de saudade.
Um maçarico corre diante de mim, pernaltas se assustam e alçam voou grasnando impropérios para nós, olho para trás e vejo as marcas sendo lambidas pelo mar, vejo minha saudade sendo apagada, olho adiante e vejo meus passos crescendo e imitando outros que já se foram. Itapirubá não mais se fez ilha é certo, será que o mar não sente mais saudade de abraço? Será que enfim, o passado passou como letras que caem de uma página e se amontoam no pé do tempo? Eu sei que o guri é ermitão hoje, sei que os cabelos ficaram brancos, sei que os passos vacilam entre as dunas, sei que soa no vento um quê de espera, um quê de até breve, quando apenas saudade é sentido de espera, como as ovelhas que se foram dos pastos, e só as pedras guardam secretamente tudo que viveram. Voltar foi outro caminho, acelerado como o tempo é quando se espera dele o conforto de um abraço.E lá na praia ainda ouço o grasnar dos pernaltas.