“Antes gostaria de deixar claro que não uso nomes de pessoas reais, isto requer pesquisa, assim crio personagens, embora a história seja o mais próximo possível da realidade daquele dia.”
O sol estava morno, uma névoa fluía das águas da praia do porto, indicação de água fria, se podia sentir o frio da água na areia sob os pés descalços, arrastar as estivas era um endurecer de dedos.
A baleeira Caçadora I, estivada, esperando a tripulação que ainda no rancho faziam os últimos preparativos, um gole de cachaça, um café forte ‘cepado’, as braçadas conferindo os cabos de amarração, o arpão, dois três, os cordões da banana de dinamite, medição de um minuto, trinta segundos, o fluido na cepa de sarrafo, isqueiro, algo que os valha.
O tempo medido nos olhos do vigia, o semblante amarrado do arpoador, o silêncio de todos na oração de proteção, o beijo no santinho enfiado no bolso da camisa surrada, o cheiro do fumo picado na palma da mão e a palha amaciada na lâmina do canivete com certo louvor, o enrolar cemitério e o fio de salina fechando o cigarro.
Um amém sentido, proferido pelo patrão, o olhar em cada um como despedida antecipada, um quê de sorriso para o filho Antônio, o passar a mão na barba já tão branca, o chapéu de palha tão despontado, salobre de suor e mar, por último o ar enchendo os pulmões pelo tempo que não passa, para.
O apito soa, a camiseta branca como bandeira sinaliza, Pedro na porta do rancho enxerga e alerta…
– Tem uma entrando na baia…
– Vamos aos remos, grita o patrão!
Pedro, Sabino e João nos remos de estibordo, Alirio, Custódio e João Filho nos remos de bombordo, Alípio de patrão e Sebastião no arpão. Correm os corpos na areia fria, balança a baleeira de um lado para o outro até aprumar na estiva e deslizar para as águas. Uma, duas, três estivas já boiavam seriam resgatadas pelo que ajudavam na carga, remadores em seus remos, adrenalina fervendo no coração.
Na passada do molho lá no proto, o esguicho, novo mergulho, a contagem do tempo, outro esguicho, nova tomada de tempo, os remos puxavam água e a baleeira singrava forte e veloz, um minuto gritou Alípio, outro esguicho, outra contagem, trinta segundos novo grito, tá diminuindo à entrada.
Sebastião coloca a banana de dinamite no guarda-mato do arpão, o pavio cortado para trinta segundos, a fiada de cabo enrolado na proa, uns trezentos metros na medida, ainda apagado.
– Duzentos metros, grita Alípio o patrão.
Prepara-se Sebastião avivando a brasa do palheiro, seus amigos nos remos dando força na braçada diminuem a distância, um esguicho soprado tão alto que arrepia João Filho, o pai João fecha por segundos os olhos, Alípio dá de bombordo na baleeira, o leme obedece na tangente e segue o grito…
– Lança Sebastião, AGORA!
Ordem dada, ordem cumprida e Sebastião acende o pavio, seu braço faz o arco, torce o tronco na alavanca, o arpão segue veloz e certeiro no costado da baleia, que sente o tranco da dor, forçando o mergulho, sua nadadeira esquerda que atinge dois remos, que se quebram ferindo Alirio. Outra ordem é gritada…
– Passa um remo de estibordo para bombordo, anda não demora.
O cabo se desenrola com velocidade e aos poucos diminui e se ouve o estrondo, uma profusão de sangue, tinge a água tão verde azulado, a Baleeira sente o peso e começa a faina de rebocar, começa o final deste ato, teatro das águas, vida pela necessidade, conforto, morte de um, um mais, um menos, a bandeira em sangue tremula nas ondulações, treme o patrão na adrenalina, geme Alirio segurando o braço, suspira João olhando João Filho.
Lá na praia se estica o cabo de aço, uma multidão se aglomera, a demora é tanta, a baleia pesa, não mais esguicha, não mais saltará, não mais cruzara oceano, não, não mais.
Gaivotas voam em círculos, outras pousam n’água, o sangue chama e a fome atenta, o dorso negro boia, ilha de gordura e óleo, nos remos quatro pares de braços cansados dão de tudo e um pouco mais, as ondas se elevam, mais um pouco quebram, se espumam, e o barco arrasta a quilha na areia, correria para tirar Alirio ferido, outro na amarração da cauda, o cordame preso ao aço que se estica e arrasta a baleia até terra firme, sobem tantos para a foto, um clique eternizando a última baleia caçada.
Lá nas ondas do fundo ainda tremula uma bandeira vermelha que se dilui em tristeza, tremula ondulando num adeus dos esguichos, dos saltos, dos cantos, silencia a praia já sem onda, no rancho ainda há tempo para um abraço, João envolve seu filho amado, no mar outro filho se afasta lentamente soltando esguichos e cantos de orfandade.
A caça foi real, a história não.
Inspirado na última baleia morta na praia do porto no fim dos anos sessenta; inicio dos anos setenta.
Dario – 2018