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Daniel Luiz Miranda

ENTREVISTA: ‘O futebol é uma extensão extrema de todos os preconceitos da sociedade brasileira’, avalia Danilo Lavieri

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“Repórter esportivo dos canais UOL, fala sobre futebol, minorias políticas no Brasil e o papel social da imprensa”

O futebol brasileiro tem sido, em sua história, extensão do cenário nacional e, portanto, um reprodutor do orgulho e das vergonhas que, como sociedade, o Brasil produz. Diante de uma ferramenta de massas tão poderosa, é comum que disputas públicas acirradas encontrem terreno fértil e se proliferem em meio aos atores deste espetáculo muitas vezes macabro. Mais recentemente, Neymar se envolveu em uma “guerra aberta” com a atriz Luana Piovani, que associou o jogador à PEC que viabiliza a privatização das praias brasileiras, proposta pelo Senador Flávio Bolsonaro (PL).

Pensando sobre as nuances do maior produto cultural brasileiro, suas potências e fragilidades, o GayBlogBR convidou Danilo Lavieri, repórter esportivo dos canais UOL, para uma entrevista exclusiva. Lavieri deixou claro seu pessimismo quanto ao avanço das pautas sociais em meio ao futebol e a necessidade de uma postura assertiva da mídia no processo de fiscalização e reeducação da audiência do esporte.

Com a considerada tardia suspensão do Campeonato Brasileiro por conta das chuvas no Rio Grande do Sul, teve-se uma impressão de que o Parreira estava equivocado quando disse que “a CBF é o Brasil que deu certo”. O que você pensa sobre a relação entre essa decepção com a CBF durante esta experiência diante da tragédia e quais expectativas de vermos o futebol no Brasil igualitário?

Lavieri: Apesar de sempre buscarmos culpados – e a CBF tem muita culpa em diversas coisas que faz – neste caso específico da parada em função dos acontecimentos no RS, é um caso complicado. A gente tenta ver pelo lado empático e, logo no dia seguinte, pensei: “tem que parar”. Depois, fui pensando bem e percebi que era melhor o futebol continuar para ajudar. Não consegui ver, na prática, a parada do futebol ajudando a melhorar a situação após a tragédia. Até se compararmos a postura de outros países diante de tragédias, guerra etc. Parar o campeonato brasileiro poderia transformar uma tragédia regional em um grande problema nacional – no aspecto de calendário, no “negócio futebol” em si, por mais doído que seja pensar em um negócio enquanto um estado está debaixo d’água. Mas, por uma questão prática, no final, acho que o futebol poderia ter continuado e ajudado na questão da tragédia de uma forma diferente, arrecadando dinheiro, usando a renda dos jogos, divulgando campanhas etc., ao invés de parar. Poderia ser dada uma parada específica para os times gaúchos resolverem onde vão jogar, como acabou acontecendo após a breve parada. E aí é aquilo, né? A CBF erra muitas vezes. Não estou aqui a isentando, porque acho que houve muita demora para tomar uma atitude. Quis compartilhar a decisão com os clubes. No geral, é uma boa ouvir seus “filiados”, digamos assim. Mas, neste caso, havia um grave conflito entre os times que queriam parar e os que não. A CBF precisava ter tomado uma decisão mais rápida para ajudar. Obviamente, a frase do Parreira é muito ruim, porque não existe isso de  a CBF ser o Brasil que deu certo. Pelo contrário, a CBF é o reflexo de todos os problemas que a gente tem – da concentração de renda às desigualdades.    Basta ver a dificuldade que a CBF tem em atuar na luta em dar mais espaços às minorias e no combate a outros tipos de desigualdade que não as financeiras.   

Quanto ao da tema homossexualidade no futebol, nenhum dos cerca de 12 mil atletas profissionais masculinos brasileiros é autodeclarado gay ou bissexual, por exemplo. Por que é tão difícil naturalizar a pluralidade da sexualidade dentro do futebol? É um preconceito movido pelas mesmas mazelas que a luta das mulheres – que abriga muito melhor a comunidade LGBT+ do que os ambientes masculinos. Por que essa diferença entre os dois “mundos” é tão gritante?

Lavieri: Em relação a essa questão da comunidade LGBTQIA+, eu acho que o futebol é um extremo do que temos na sociedades. Já temos uma sociedade machista e preconceituosa. O futebol é um extremo disso. É um lugar que, desde o primeiro dia, você vive aquela questão de “ser o machão”, ser o mais forte. Expressões que você ainda vê na sociedade, como “deixa de viadagem”, e todos esses preconceitos, são muito presentes no futebol. Na arquibancada, praticando, na escola, no clube. Isso acaba sendo um reflexo. Obviamente, é um ambiente absolutamente… eu não consigo imaginar como deve ser para uma pessoa que queira se declarar em um ambiente assim, todo o preconceito que ela vai sofrer. Desde o primeiro momento que você entra em contato com qualquer contexto do futebol, você encontra um ambiente muito tóxico, em diversos sentidos. E aí, mais uma vez, vai além do futebol. Pode ser que o futebol possa ser um exemplo, catalisador. Mas é uma questão que você precisa mudar como um todo e o futebol acaba sendo um exemplo extremo do que vemos em diversas situações sociais.

Um funcionário das mídias sociais do Corinthians foi demitido, em 2020, por uma piada homofóbica no Twitter direcionada ao SPFC (chamando o estádio de Panetone: “Cheio de frutinhas dentro”). Você imagina o brasileiro superando a sua masculinidade frágil, o fundamentalismo religioso e o moralismo?

Lavieri: Sobre o moralismo, eu não sou muito otimista nesse sentido. Eu digo isto pelo que eu vejo, comigo, entre meus amigos. Uma diferença muito grande do que era com meu pai, meu avô, sobre este pensamento. Mas, infelizmente, percebo que vivo em uma bolha mais progressista, que pensa nestas questões em comparação a várias outras pessoas, mesmo da minha idade. Quando eu saio um pouco dessa minha bolha para viver em outros lugares, não me parece que seja uma questão de faixa etária, mas de contextos mais ou menos preocupados com isso. Por isso, acabo sendo menos otimista. Não acho que vá melhorar. Essa masculinidade frágil, como você pontuou… as pessoas são ensinadas e pensam assim, levando adiante, e a polarização exacerbada também acaba só piorando as coisas. Não sou otimista, infelizmente. 

Você já ouviu falar na LIGAY (Liga Nacional de Futebol LGBTQIA+)? Há mais de 50 times espalhados por todas as regiões do país. Os campeonatos são regionais (Copa Sul, Copa Sudeste, Copa Nordeste) e classificatórios para o torneio nacional, e alguns estaduais. O que você pensa sobre a necessidade de se organizar com seus pares LGBTs para poder jogar futebol com tranquilidade, espaço e sem receios?

Lavieri: Eu acompanho as iniciativas da comunidade LGBTQIA+ para campeonatos e acho super bacana esse movimento de espaço e conscientização, onde as pessoas podem se sentir à vontade para praticar o esporte, sem os preconceitos. O que eu acho que seria bacana é que essas iniciativas levassem a não precisar mais distinguir, colocar “um pra cada lado”. Em todo caso, acho que é muito legal que haja uma união em torno disso. Literalmente, “a união faz a força”. Você une e passa o recado para a sociedade. Eu não acompanho tão de perto a liga, mas eu torço bastante para que dê certo e essas medidas caminhem para frente e deixem uma mensagem clara: que, no futuro, não existam mais ligas distintas. Eu tenho até um amigo que… não sei se “presidente” é o termo correto, mas trabalha, joga e organiza um time chamado Unicorns, em São Paulo. Eu já joguei, fizemos amistosos contra o time deles e foi bem legal. Enfim, acho que essa iniciativa bacana tem que ser só o começo para que fique claro que a divisão não precisa existir. No final, somos todos iguais.

Nos últimos meses, foi relembrado no futebol da violência que se vive sendo uma cidadã brasileira: Cuca, Robinho, Daniel Alves. Por outro lado, o Vini Jr., preto e periférico, vai se tornando grande com títulos e, fora de campo, com uma luta intensa – e triste – contra o racismo, do segundo maior clube de futebol do mundo, o Real Madrid. Qual o dever das instituições do futebol – times, ligas, federações, personagens – diante desse caso? E a da mídia?

Lavieri: Bom, em casos como o do Cuca e do Robinho, a imprensa tem papel fundamental e tem que ser resistente, resiliente, porque a gente vive um momento de polarização absurda e, muitas vezes, o óbvio – como não achar legal e permitido um cara condenado por estupro trabalhar – vira um problema, como se estivessemos apenas “militando”. Isso não pode acontecer. A mídia tem que ter esse papel fundamental de fiscalização, que era o que, lá atrás, quando eu comecei a estudar jornalismo, nos falavam: “olha, vocês são praticamente o quarto poder”, que é como a gente brinca. Então, pra mim, o papel fundamental da mídia devia ser seguido por clubes e federações na conscientização do público, porque estes exemplos, às vezes, atingem as pessoas que nem sempre têm acesso a formas de educação. No futebol, você acaba atingindo públicos diferentes, que não necessariamente vão parar para ler um livro ou estudar coisas mais profundas. Assim, você amplia o impacto. É fundamental que o futebol e a imprensa em geral se unam. Acho que o exemplo do Vini é bacana. Eu, às vezes, tenho restrições a aspectos técnicos do Vini. Acho ele um ótimo jogador, mas que ainda tem muitas coisas a melhorar, como a finalização. Mas eu confesso que quando olho pra ele como exemplo dessa luta, de resistência, esses aspectos ficam em segundo plano. Acho o Vini um cara sensacional, um exemplo maravilhoso que a gente tem. E tomara que o Endrick (jogador formado nas categorias de base do Palmeiras e vendido ao Real Madrid) siga esse exemplo de ser uma bandeira na luta contra o racismo quando for para o Real.

Futebol e política têm sido indissociáveis, onde qualquer erro pode causar uma catástrofe para os clubes – como com o Cruzeiro, que virou SAF e agora “revirou”. O que você pensa, como à Milly Lacombe, por exemplo, a mercantilização da nossa paixão mais visceral e individual?

Lavieri: Eu não me irrito tanto com a mercantilização, como a Milly, por exemplo. Eu me irrito mais com times como o Cruzeiro, o Vasco e o Botafogo, pra ficar em alguns, que atingiram o fundo do poço por má gestão dos cartolas e ninguém é cobrado. A gente tem uma cultura no futebol de todos os dirigentes fazerem o que bem entendem durante dois anos de gestão e não tão nem aí pro que vai acontecer depois. Eles afundam clubes que são a paixão de milhões de pessoas. Isso, para mim, é mais irritante que as SAFs. As SAFs têm vários problemas e coisas boas. Solução para alguns e problema para outros. A gente está vendo isso na prática Mas é consequência de um futebol cada vez mais organizado, cada vez mais tratado como empresa, porque rende muito dinheiro. Basta ver que o Flamengo fatura R$ 1 bilhão por ano sem ser campeão. Então, temos várias consequências ruins desta “mercantilização”, como você disse. Então, o Flamego e os times mais organizados com empresa, acabam cobrando os ingressos mais caros, porque o futebol acaba ficando mais caro. Manter um time como Flamengo e Palmeiras, hoje, é muito difícil, você precisa de fontes de receita – como bilheteria e sócio torcedor. Isso acaba restringindo o acesso. Pra mim, se torna uma equação muito difícil de resolver: ter um negócio que custa tão caro e, ao mesmo, transformar isso em algo de acesso mais barato para o resto da população, porque é popular e cultural. É difícil, porque se você tenta diminuir o custo do produto, impacta diretamente na sua qualidade, e o torcedor vai protestar e reclamar. Mas eu não me irrito tanto com a mercantilização do futebol, não.

Você tem postura muito firme quanto a temas que são frequentemente tidos por delicados, sobretudo os de cunho social. É interessante e possível ver alguns “choques geracionais”, por vezes. Como você classificaria as oportunidades profissionais na mídia do futebol, nosso maior produto cultural? O que dá pra fazer, em termos práticos, para tornar este meio mais acessível e diverso? Poderia exemplificar a sua resposta?

Lavieri: Primeiramente, obrigado pelas palavras. É a realização de um sonho de carreira poder discutir e participar de um programa com esses caras que são e sempre foram referência. Eu os assistia na TV. Hoje, participo com eles. Já sobre as novas oportunidades no futebol, acho que têm sido cada vez mais limitadas nos veículos de imprensa. Por que eu digo isso? Quando eu entrei, me parece que tinha o triplo de veículos que cobriam futebol. Hoje, vários jornais fechados e diversos sites não têm mais setoristas. O UOL é uma exceção, se você pensar no tanto de site que não cobre mais futebol como cobria antes. Isso nos grandes veículos, os lugares onde você tem um pouco mais de segurança em questão de emprego. Por outro lado, temos a internet possibilitando a entrada de pessoas novas, influenciadores etc. Temos várias questões a discutir sobre isso, desde de como são tratados o papel a exercer e o impacto social que o jornalismo tem – o que levanta também a falta de formação de muitos para exercer a função com responsabilidade. Mas o fato é que o jornalismo esportivo está cada vez mais restrito e nunca foi um exemplo de diversidade. Até porque era um recorte de quem conseguia fazer uma faculdade, chegar lá. Isso restringe, de qualquer jeito, as possibilidades de todo mundo. Basta ver que quase não temos jornalistas negros no meio. Eu tenho visto, no Sportv, na Globo, no UOL – em outros canais e veículos tradicionais – a busca por abrir novas oportunidades e chances. Mas também é uma questão da sociedade como um todo, das oportunidades de formação, um problema que vem lá de trás e que passa pela atuação do próprio governo e do todo. Eu penso que as empresas privadas têm que fazer mesmo esse movimento e tentar ajudar nesse sentido, mas não podem ser os únicos. O que tem sido feito é bacana para tentar abrir mais oportunidades, mas é muito pouco para resolver esse nosso problema, que é gigantesco.

Podemos esperar um outro Sócrates se levantando do futebol (por mais incomparável que tenha sido o “Magrão”)? Ou você acha que as ferramentas de silenciamento são maiores hoje em dia, uma vez que o Bom Senso FC, por exemplo, foi tão “facilmente” calado, mesmo com mentes bem formadas como o do Alex por trás?

Lavieri: Eu acho difícil a gente ter um outro exemplo como o Sócrates. Ao mesmo tempo, é uma coisa que pode surgir do nada. Honestamente, acho difícil porque, atualmente, vemos os jogadores muito preocupados em não assumir um lado, não “se queimar” com alguma parte. Como eu te disse, temos uma sociedade dividida praticamente ao meio. Se você falar alguma coisa, pra cá, se queima com um lado. Se falar mais pra lá, se queima com a outra metade. A galera tem muito medo, questões com essa imagem. Basta ver que os jogadores praticamente não falam. Os que, por exemplo, se declaram de direita, se queimam com a esquerda. O contrário também é verdade. Se torna uma questão difícil, porque os jogadores acabam adotando uma postura mais neutra para não perder este acesso com o público. 

Daniel Luiz: Catarinense, 25 anos e professor de Literatura e Língua Inglesa. Homem gay, apaixonado por música e que respira futebol e cultura latino-americana.

Opinião:
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal AHora

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