A manhã é apenas um risco de luz no horizonte, tímida manhã, no fogão à lenha o amarelo avermelhado do fogo fazia danças às sombras no teto e nas paredes. Num canto da cozinha cestos com roupas esperavam a vontade na obrigação da vida o seu momento de banho.
A mesa pequena, em madeira tosca e sem verniz, suporta alguns pães, a manteiga, uma jarra pequena com leite e duas fatias de bolo de milho, sobras do domingo depois da missa.
No quarto, filhos e filhas ainda sonhavam. Maria perdera este direito fazia tempo, desde que João falecera. O olhar pela janela pedia dia bom, um pouco de vento, um pouco de alento, um pouco de tudo.
Uma despedida num olhar aos filhos sonolentos, a mais velha já acordou, despertaria os menores e do banho rápido ao café ralo, a ida para a escola, depois na cata do carvão libertado dos vagões lá na linha férrea, outra espera na volta da mãe.
Maria com seus cestos com roupas, com passos lentos, ombros curvados, pele surrada do sol e do sabão, singrava a trilha feita em cinza de carvão da Usina até a Lagoa da Bomba. Saracuras corriam adiante, paravam e olhavam Maria, que nem as via, seguia o negro cinza do carvão.
A primeira parada era no varal. Passar o paninho úmido nos arames, colocar as varas de taquara que caíram na noite anterior, dois preás mastigando tiririca olhavam-na, bochechas cheias, mastigavam e mastigavam.
Maria sem sonhos seguia o caminho negro, cinza de carvão, um cesto de cada vez levado à fonte; balde vazio na outra mão; barras de sabão feito em casa, lenço surrado e velho cobrindo os cabelos, a tábua de lavar emanava a cor da madeira crua, tantas vezes usada que mostrava veios da idade. Outra tábua atravessada servia aos joelhos amparo sem conforto, uma vara de taquara ao lado servia para proteção, era comum uma cobra d’água vir caçar lambaris na fonte de lavar, noutras servia para me educar no respeito da sua labuta, quando ia ali caçar frangos d’água. O lugar tinha dona e isso era afronta, ‘ô se era’.
Maria lavava roupa de ricos e de pobres, menos pobres que ela, sonhos desfeitos nos lençóis tão brancos, respeito nas marcas nos colarinhos das camisas alvas, sujeira dos pequenos nas calças e calções, indelicadezas das mocinhas nas roupas menores. Maria valava e cantava e fazia fofoca, e olhava o espelho d’água que o vento tremulava em pequenas ondas nos movimentos de vai e vem das mãos nas roupas ensaboadas.
Horas de joelhos nesta prece de lavar, horas com mãos molhadas, alento mesmo era ver o vento dançar com as roupas no varal, num sorriso largo Maria entendia o vento, dele recebia o agradecimento pela lavação, pelos joelhos, duas rodelas magras, calejados, frios e curtidos.
Na sobra do tempo colhia esterco, amontoava depois filhas e filhos com latas de tinta vazias, seguiam em procissão, os mais novos com uma lata, os mais velhos dobravam a razão nesta conta de cebola verde bem cuidada, da alface robusta, da cenoura bem corada, tudo numa salada bem posta ao lado do feijão em panela de barro ardendo no fogão à lenha.
Quantas vezes, sentado na colina gramada, eu ficava vendo os varais cheios ao vento, ou as ancas de Maria, de joelhos dobrados, quantas vezes olhava as filhas na trilha, feito saracuras magrelas seguindo a mãe no caminho cinza de carvão.
Aprendia que a fonte era sagrada, aprendia que o trabalho era salutar e aprendia que as ancas seriam um gosto eterno, no movimento de ondas, enquanto as espumas se diluíam nas águas da Lagoa da Bomba.
Maria Lavadeira, jovem ainda, como todas as marias, sagrada, educadora silenciosa da vida, Maria das águas, das saracuras, dos preás, do vento em varais tão brancos em dança de conforto alheio, Marias dos joelhos magros, da pele curtida, do lenço surrado, dos cabelos em desalinho, Maria do fogão à lenha, da oração tão sentida no canto de uma cozinha, Maria das fatias de pão de milho.
Hoje, hoje olhos a fossa que se transformou a lagoa, a troca do perfume de roupa lavada por o dos dejetos da indiferença, olho a colina solitária onde me povoava sonhos de guri, no desejo de ver as filhas de Maria seguindo em fila no cinza de carvão da trilha, só o grito triste das saracuras continuam ecoando em mim.