Os anos 1970 foram de aventuras, buscávamos aprendizado. Quando não era desbravar o banhado da Lagoa da Bomba, era outro lugar da cidade. Deixo para vocês as criticas, pois as minhas foram severas para comigo.
Numa manhã de domingo, estávamos prontos, mas tudo começou uma semana antes, quando um dos da minha gangue (risos) veio com uma ideia louca:
– Sarrafo, eu vi uma foto dos molhes do Rio Grande e lá tem uns carrinhos movidos à vela sobre trilhos. Que tal fazermos o mesmo aqui?
Pensar, ponderar, quantificar os riscos e a possibilidade de darmos de cara com a locomotiva sequer passou por nossas mentes.
– Sei onde tem as rodas. E pouca madeira será fácil encontrar – falei.
Eufóricos, corremos em busca da primeira e mais importante parte do projeto: as rodas.
A Cerâmica Icisa era nossa oficina e depósito de materiais. Bom, naquela época as coisas eram diferentes, havia muitos eucaliptos e até residência dentro do pátio. Minha cabeça não é boa para nomes, mas creio que o Sr Nelson Figueiredo foi quem morou ali por algum tempo. Tinha um portão que servia de acesso à família e a nós. Perto desta casa, de frente para ela, um pouco à esquerda e já tomadas pelo mato, havia um montão de rodas de carrinhos que alimentariam os fornos de queima. Pedimos emprestado quatro delas. Claro, foi-nos negado e negado outras tantas vezes, isso até que, enfim “conseguimos” as benditas rodas.
A alegria tomava conta e como sabemos ela motiva a criatividade de moleques sem ter muito que fazer.
Para nossa sorte, se é que se pode dizer sorte, as rodas estavam com os rolamentos casados, bastava colocar um eixo e pronto. Bem… pronto nem tanto, nossa engenharia era um tanto limitada, porém a criatividade era, deveras muito, muito grande.
Mais pedidos, agora para meu pai. Eu era alto e magro demais, daí o apelido de “Sarrafo” (não se atrevam a me chamar assim hoje), a desculpa perfeita, halteres para musculação, dois, vários amigos em fase de engorda. Colou, e dois dias depois tínhamos as rodas nos eixos só que um probleminha a mais: a bitola dos trilhos não combinava com os halteres, digo, eixos. Voltamos então com a medida certa e serramos, readequando ao projeto.
Segunda parte em andamento. A plataforma em madeira deveria ficar sobre os eixos. Um dos meus amigos, cujo pai trabalhava no Porto, fez quatro engates em madeira, coisa simples, quatro pedaços de madeira, tendo uma delas cortadas em “U”, na bitola do eixo, mais dois dias nesta fase.
A construção continuava em toque de caixa, ou seja, pede emprestado martelo, serrote e pregos. Um vai ao mato buscar duas varas longas de bambu, outro revirando restos de madeira e assim criamos a plataforma que. por sinal, poderia ser desmontada e remontada na nossa pista de teste (risos).
A terceira fase. a mais complicada, seria a construção da vela. Como seria? Triangular ou retangular? Voltamos para a prancheta, giz na calçada em frente da minha casa. A discussão foi acalorada, até que percebendo através de cálculos matemáticos, bastava a retangular, seguiríamos em linha reta. Colocado em votação que democraticamente foi de 4X1, e este “um” forçosamente ainda trocou seu voto. Partimos para a colocação do mastro: um furo na plataforma e alguns pedaços de tábua também furadas serviriam como reforço. Testamos a firmeza através de mais cálculos matemáticos: a força dos braços. A vela foi outra complicação. Um dos amigos sugeriu um lençol. Certo, mas de quem? De ninguém. Que tal do varal das lavadeiras da Lagoa da Bomba? Lá tem um montão. Perfeito, pelo menos não sofreríamos tanto quanto as surras que nossas mães nos ofertariam.
Uma última reunião na casinha feita na restinga atrás da Cerâmica e decidimos que domingo seria ideal. Só haveria um comboio de carvão pela manhã. Combinamos então o transporte especializado do projeto até a pista de teste: dois carrinhos de mão e aproveitamos o horário de menor movimento de marinheiros para o Araçá, já que não queríamos curiosos de olho no projeto. Seis e meia da manhã seria o horário ideal para nosso transporte. Houve protestos, claro, nada que duas ou três ameaças não resolvessem. Aprovado democraticamente, nos despedimos, era fim de tarde de uma sexta feira qualquer.
Dormir foi complicado. Algumas idas à casinha da restinga, olhar tudo amontoado e pronto, era instigar a imaginação. Sonhei que chegara até a Cabeçuda, feliz da vida era só esperar a troca de vento e estaria de volta ainda para o jantar. Acordo assustado, droga! Ainda é sábado.
Domingo deu o ar da sua graça revezamos a observação do trem com seu comboio, às dez da manhã ouvimos o apito, contamos os vagões, vimos às manobras de entrada, contamos os minutos na sede da locomotiva em abastecer seu reservatório com a água da lagoa, ouvimos seus chiados e apitos, os excêntricos das rodas girando na força do cavalo vapor, e, por último a canção decorada: “café com pão, café com pão, café com pão…” e lá se foi a locomotiva para dentro do pátio do Porto.
Almoço de domingo era sagrado. Galinha assada desde cedo, maionese, salpicão, farofa, tudo de bom! Um guaraná dividido pelos filhos e a cerveja para meus pais (lembram? Num belo casco verde).
Ajudar a lavar a louça, secar outro faria, olho as horas recém-aprendidas a vê-la: “quase”, foi o que escapou da minha boca…
– Quase o quê? Pergunta minha mãe, olhando-me de esguio.
– Nada, mãe. Só que marquei uma ida à praia com os amigos.
– Seis horas em casa. Certo!
– Sim senhora.
Liberado dos afazeres penais da cozinha, parti feito lebre para a casinha da restinga. Fui o primeiro. Meia hora depois os outros vinham rindo e atirando pedras um nos outros, passou um pensamento na minha cabeça: ‘tenho que rever minhas amizades.. Só tem maluco’. E eu?
O apito. Corremos subindo a duna, sentamos e observamos o trem com sua linha estralando e rangendo. O maquinista acelera para subir o declive da Vila, a fumaça a princípio negra, depois num azul acinzentado. E como cantava alto sua canção: “café com pão, café com pão, café com pão…”, chiava e apitava ao passar pelo Araçá. E passa o Vinoca, passa a Lomba, passa a ponte e nós passamos a correr.
Pega o eixo, eu pego com você a plataforma e outro a vela, vamos que a hora é esta.
Colocamos os eixos nos trilhos, perfeito, a plataforma nos eixos, perfeito! A vela no seu buraco, perfeito.
Desenrolamos o lençol no mastro de transversa, este desenrola fácil e se estica no mastro de transversa inferior, passamos a argola em oito no mastro principal e engatamos a transversa inferior, pronto a vela inflou, livre e sedenta de vento ficou gorda, duas cordinhas deixavam na medida de curva de vento na vela, permitindo a visão adiante.
Subimos e, sentados, começamos a rir e a gritar quando o empreendimento tecnológico caseiro começou a se mover, a princípio lentamente, girava as rodas, depois começou a mover-se mais velozmente. Que delícia o vento no rosto! Maravilhoso ver os dormentes passando céleres sob as rodas! fizemos a primeira curva suavemente num “S”, veio a reta da ponte sobre os trilhos, veio alguns gritos dos que por ali moravam: “Seus malucos”! Veio a ponte e já estávamos numa boa velocidade, veio um apito, todos olhamos uns para tos outros.
Veio o trem de ré, veio um frio na barriga, veio uma gritaria danada, não dava para saltar, corria muito, eu gritei: O FREEEIOOO! Que freio? – gritou outro. “Usa o bambu”, quem usou o bambu como freio tremia tanto devido a passada nos dormentes que creio suas obturações afrouxaram, sua cabeça chacoalhava para cima e para baixo – Sabe quando o desespero faz você rir? Eu ria pra caramba.
No vale do cemitério, uma coisa quadrada balançando feito marinheiro de um lado para o outro vinha crescendo. o apito era um lamento agudo em vapor fino e branco. Outro ajudou o primeiro e o nosso carrinho diminuiu a velocidade quando soltei as cordinhas que prendiam a vela. Quando estávamos mais ou menos a 50 metros da ponte, o vagão também estava do outro extremo, cego, vindo à nossa direção.
Dois saltaram e rolaram por entre as pedras que servem de leito aos trilhos. Eu e mais um forçamos mais o bambu e conseguimos fazer o carrinho parar. Erguemos a lateral do carrinho e assim saímos dos trilhos. O carrinho escorregou nas britas e desceu o barranco para ficar bebendo água da barrinha.
O vagão passou e os outros depois dele, a locomotiva vinha por último freando no vapor e o ar comprimido, o maquinista com a cabeça além da janela nos olhava com certa desconfiança e nesta atitude puxa a corda do apito: dois saltaram para a lagoa, outro e eu pegamos pedras do trilho e atiramos no maquinista que estampava um sorriso largo.
Assim aconteceu nossa aventura num domingo qualquer, mais uma história para os netos alheios. Sabem; às vezes ainda passo por lá numa caminhada solo, ainda sinto o vento no rosto e o apito no vale, vejo meus amigos de infância, todos sentados à beira do trilho e eles olham para mim enquanto passo. Alguns se foram, outros se perderam nas estradas da vida. Meus passos se tornam lentos nesta reverência aos amigos, olho adiante ouvindo a canção tão marcante da locomotiva se evaporando no ar... “Café com pão, café com pão, café com p… c… chuuuuuu!”
Fim!
O autor e suas obras
Com 45 anos dedicados a criação de histórias e a produção de livros, Dario Cabral da Silva Neto, de 60 anos escreve poesias e se dedica ao desenvolvimento de romances. Dos 20 títulos já escritos, oito foram publicados.
Entre 1973 e 2000, Dario era, exclusivamente, poeta, mas em 2000, decidiu se transformar em romancista. Entre as surpreendentes obras, que são vendidas por R$ 30, estão os clássicos Catador de Sonhos, Uma Questão de Amor, A Ravina, Pétalas de Amor, O Segredo de Melissa e a Caminhada do Zé Mundão.
Os livros escritos por Dario não tem um foco religioso, mas trazem mensagens espiritualizadas.
Para adquirir as obras de Dario basta realizar contato com o escritor pelo Messenger do Facebook (in box) ou pelo telefone (48) 999378198.