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Curiosidades sobre a Caixa D’água – Por Dario Cabral Neto

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Sempre buscamos deixar uma mensagem para aquele que vem depois de nós.  Um sinal como marco, uma trilha como caminho, uma lenda reverenciando o que foi contado no passado. Um desenho numa caverna, mostrando que ali estive eu, quando primitivo ser, que ali há possibilidade de caça, água fresca, abrigo.

Passa o tempo dentro desta abóboda celeste, com tamanha velocidade, que nem percebemos que o próprio tempo passa. Olhamos para um horizonte e alguma coisa acontece, o cheiro de chuva, o vento estranhamente muda, o inverno começa rigoroso, as águas se movimentam numa forma jamais vista. 

Reúne-se o grupo familiar, social e parte-se para uma jornada nômade. A incerteza é apenas o desejo que impele seguir adiante. 
Assim… Conto o que me foi contado.

Quando Imbituba buscava água para suprir as necessidades da pequena população decorrente das investidas de Henrique Lage, o morro da antena era a melhor opção, rasgou-se a mata que cedeu graciosamente espaço para a estreita estradinha até o riacho alimentado pelas águas do morro.

Labuta, sofrimento, necessidade, engenharia, tantas ciências envolvidas na construção da primeira caixa d’água, recebendo a água que desce e represando-a forneceria abastecimento primário, seguindo as necessidades de pressão volumétrica, criou-se a segunda caixa, maior, mais profunda, perfeita para seu propósito.

Até aqui tudo bem é história, os livros registram, e está disponível para suprir a curiosidade de cada um.

O que os livros não contam é o que se esconde na forma de lenda, passada de um para o outro e mesmo assim, passadas no silêncio quebrado pelo fogo das fogueiras nas noites de lua, ou no pesadelo que alguns vivenciaram.

Todos sabemos que guardas cuidavam de toda a área, já falei  da granja, com seus guardas e seus cavalos, etc.

Estes mesmos guardas cobriam toda a área, dia e noite e é sobre a noite que entro na história. Chamo a atenção para o fato e não para seus personagens, já falecidos, e que descansem em paz, assim crio personagens para que tomem lugar destes, preservando suas memórias.

Antônio acordou naquele dia de primavera, com uma sensação estranha, buscou o balde e com ele a água, fogão já aceso fervia um bocado dela para o café que Maria esmeradamente passava pelo coador num tripé de madeira.  Um bom dia seco, um olhar preocupado, silencioso, o balde de zinco colocado na chapa quente, chia ao sentir o calor do fogo.

– Dormiu bem, meu velho? Pergunta Maria secando as mãos numa toalha bordada por sua mãe, presente de casamento, toalha do tempo, lembranças boas, sentidas no secar das mãos. 

– Dormi, sim, mas estou acabrunhado com uns pensamentos, que não me revelam nada. Responde Antônio, passando a mão nas ancas de Maria, que devolve com uma tapa, seguido da palavra; assanhado!

O café sempre foi divertido, cheio de gracinhas, carinhos, entretanto, carinhos rijos, determinados pela forte personalidade de Antônio.  Café sorvido e devorado o pão caseiro, duas bananas assadas na chapa com a farinha de mandioca, completou o desjejum.

O braço forte ergue o balde com água já quente e os passos até o quarto de banho são curtos, toalha nos ombros, barra de sabão na outra mão, a bacia recebe a água e os vapores embaçam o espelho na parede acima da pia. 

Antônio toma seu banho, tão comum e experiente nesta faxina, sai do banho já barbeado, toalha enrolada na cintura, busca o quarto para vestir-se e seguir para o trabalho. 

As rondas seguem dentro do padrão rígido da sua personalidade, sempre que preciso o chicote lanhava as costas de ou outro um rapaz furtando frutas, ou caçando entre os eucaliptos.  

Almoçou e a tarde acelera seu acabrunhamento, sente Antônio um tipo raro de arrepio, aquele que nasce no valo da bunda e segue costas acima e acaba no cocuruto da cabeça, arrepiando os cabelos deixando um suor frio e incômodo.  Volta para casa às três horas, outro banho, outro café, e deita-se para a segunda jornada, é seu dia de tomar conta da caixa d’água naquela noite.

Sete horas bate o relógio, as sombras já cobrem os fundos as casa, o cavalo encilhado e alimentado espera seu dono.  Vem Antônio, vestido como vaqueiro, botas altas, calça grossas, um jaquetão pesado e a capa de monta.  Olha para Maria, reverencia sua mulher colocando os dedos na aba do chapéu, dá com a espora na virilha do baio, que gira rápido e sai  pela trilha até o portão da granja num meio galope, Antônio fazia isto para aquecer o animal.

Cruza o portão e segue até a administração, cumprimenta o capataz geral, e segue para a caixa d’água, olhar as árvores que conversam com o vento lá nas copas, que permeiam luz da lua cheia com o escuro do dia, formando sombras e formas em cada passo dado.

Serpenteia a estradinha de chão batido coberto de cascalho vindo de um sambaqui, com o efeito da luz da lua a trilha parece ter vida refletida no cascalho.  O cavalo com passadas medidas segue ora de lado, ora de frente, soltando respiração em tufos de vapor.

Algumas centenas de metros adiante, numa curva onde ladeia o banhado que sempre transborda nas aguadas, Antônio sente o arrepio nascendo nas suas entranhas, o cavalo sente também, refugando o passo, Antônio, bom cavaleiro sabe dominar seu animal, o faz com destreza, e vence o primeiro ponto de angústia.

Dobra a curva e sobe a alameda já vislumbrando as construções da caixa, chega enfim ao seu posto de guarda, uma cobertura de lona entre algumas árvores, o terreno bem cuidado, ponto de orgulho da administração, apeia e amarra o baio, coloca a bolsa com cereais e capim, afrouxa a cela, desprende a sacola de dorso, alimento, café, fumo e fósforos. 

Segue até a cobertura verifica se a rede está presa, coloca madeira em acha no fogão de chão, risca o fósforo na barba de velho, e o laranja do fogo tímido corta o escuro da noite sob as copas das árvores. 

Onze horas, o ronco de Antônio se confunde num librilar com as águas da fonte, o fogo aquece espantando os mosquitos, o cavalo treme seu costado fazendo o mesmo.

Um grito soa agudo na orla do mato, outro se ouve na ravina em pedras, das águas que descem o morro, mais um e mais outro e de repente uma gritaria sacode a rede e Antônio cai de bunda no barro batido, espalha duas achas de lenha do fogo, levantando fagulhas e fazendo tremer mais ainda as sombras da noite.

Não sabe o que fazer, arregala os olhos e se cala no medo que brota e abraça seu corpo forte.  Os gritos se acentuam de forma que as formas começam a aparecer, um índio todo pintado para a guerra, dispara uma flecha que sibila passando perto da cabeça de Antônio; que rola; que engatinha; que busca abrigo atrás na primeira pedra que encontra, outra flecha se crava na árvore que suporta a rede. 

Já são tantos indos que geram confronto, um grupo desce do morro numa gritaria infernal, outro que vem da trilha de entrada com a mesma ferocidade, gritos e flechas disparadas, bordunas estouram cabeças, sangue jorra tingindo a água riacho abaixo, um índio recebe a flecha no peito e cai ao lado de Antônio que se encolhe mais ainda.

Uma guerra é travada ali, enquanto a lua é cheia espalhando sombras entre as árvores. 

Meia hora depois da meia noite tudo silencia, conforme escoa o silêncio, as formas se desfazem, as flechas somem, os corpos somem e tudo é apenas brilho de lua cheia no espelho d’água represada na caixa.  

Antônio retira um lenço e seca o suor da face, dos olhos, da alma, tenta erguer a cabeça; como custa fazer isto, como pesa, como dói;  mas consegue, olha num raio que só os guardas sabem fazer, nada encontra, já de joelhos, tem uma visão melhor, já de pé repira melhor, a mão desce e sente o revolver ainda no coldre, Antônio olha para a arma, olha para tudo a sua volta, não acreditando no que presenciou.

Seu cavalo ainda mastiga os cereais da bolsa, vira a cabeça e olha seu dono, Antônio aproxima-se do animal, passa a mão no lombo, acaricia a cara do bicho, olha bem nos olhos do seu cavalo e com a voz mais embargada que jamais alguma vez na vida até então sentira brotar, deixa escapar todo o seu medo.

Olhando os olhos do baio… Fala.

– Eu não conto se você não contar!

O relincho longo do baio corta a mata e faz vibrar as águas naquela noite de lua cheia.

As lendas são fração de uma verdade, são às vezes imagens geradas pelo medo que serve de capa para muitos covardes, mas Antônio jamais foi covarde, embora jamais tenha vivenciado tamanha balburdia nas suas rondas na caixa d’água, aviva o fogo, faz um café forte, fuma um palheiro, busca a rede e tenta sonhar com as ancas de Maria.

Opinião:
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal AHora

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