As maravilhas da restinga
Descobri a Restinga ainda jovem, onde a liberdade do caminho era um chamado de aventura. Não importava o tempo, se com sol ou chuva, seguia o chamado, a vontade do descobrir imperava no jovem que era.
Minha mochila não passava de uma bolsa de brim feita de uma das pernas de uma calça velha, dois pares de ilhós, uma corda transpassada entre eles e a alça estava feita, assim como os vergões no ombro. Um cabo de vassoura velha, ou nem tanto, furto sem pena, a aventura dita conduta, se sobrava surra, era depois, não mais importava.
Quase pronto, um punhado de pelotas de barro colhidos direto da olaria da Vila Santo Antônio, a funda com borracha da boa, não destas que se tem hoje, o tênis conga azul com solado branco, ou um bamba, cano alto de lona com suspiros refrigeradores (nossa, era top de linha!), uma garrafa de vidro de um litro com água. Agora sim, estava pronto.
Seguia o trilho em direção a Vila Nova. O cenário sempre foi mais belo e cheio de novidades, a Lagoa da Bomba, Barra do Araçá, o túnel logo adiante, uma subida forte no morro do cemitério, o pasto com seus gados ariscos, a pequena lagoa no pasto lá embaixo e, enfim, a praia; já depois da Barra do Araçá.
Seguir este cenário deserto entre mar e duna era chato, uma visão sem graça, aqui uma duna formada pelo vento nordeste, ali um punhado de junco curvando-se ao vento, outra duna e mais nada. À esquerda, o mar eterno lambe-lambe de areia e espuma, uma mesma língua chiando e estralando conforme subia ou descia a maré.
Não havia o loteamento do Rimsa e poucas casas invadiam a restinga. Depois de tanto andar eu chegara ao início da jornada. A restinga mostrava-se a mim acolhedora, verde e queimado de sol, seus pastos, juncos, plantas medicinais, pequenas arbustos frutíferos, pois a areia salgada impede o crescimento. Goiabas lindas e amarelo ouro sem bicho, sem mácula, araçás doces, gabiroba azeda, mas gostosa, outros frutos como os das bromélias, parecendo ananás, baga de macaco ouro duro de roer, sem contar com os perdigões, rolas e uma infinita quantidade de outras aves, cobras, lagartos, dentre tudo isto as corujas se destacam com seu olhar atento.
O cenário muda a cada centena de metros, a capoeira verde com suas vassouras espetaculares formando copas como que pintadas folha por folha, coqueiros de coco de catarro babando a boca e lascando dente de duro. Um grande número de lagoas se espalha nos baixios, cágados, carás, jundiás, marrecas e patos, serviam-se deste abrigo temporário.
Como não ficar maravilhado com este cenário? Como não me descobrir feliz?
As trilhas feitas por cavaleiros e suas montarias indo ao encontro a Itapirubá, também servia para meu passar, era mais leve o caminhar. O olhar atento no caminho, o cabo de vassoura servia como um repelente de cobras d’água, jararaca do campo, corais que encontrava, mas não com tanta frequência.
A luz do sol refletida nas lâminas d’água carregadas de flores raras, ou nem tanto. Lírios brancos despontando nas margens. Havia uma flor lilás, minúscula, que resistia ao vento enfrentando com robustez as ondinhas formadas, pequenas orquídeas amarelas nos cachos pendentes numa dobra de cômoro, entre os juncos amarelados pela seca, resistia linda ao verão de 1975.
Vassouras carquejas dos dois tipos, larga e fina, cânforas (conhecida como Gelol) espalhavam-se na areia com suas flores em coroa, a macela galega atapetava campos por dezenas de metros, quanto remédio, quanta beleza, tinha uma flor amarela tipo margarida, mas de tamanho pequeno, suas folhas são cinza esverdeada, peluda, que se dizia proteger contras as cobras se fosse esfregada nas canelas, não sei se verdade, eu esfregava, porém nunca fui atacado por cobra para verificar sua eficácia. Quem sabe aí uma verdade.
Diante de mim aparece o lençol de duna, alta, quente e fina areia nua de mato cheia de vida, cipós rastejam exibindo suas flores que mais parecem pássaros roxos com suas asas abertas; as ervas de bicho com seus cachos granados de vermelho doce, verrugueiras trepando arbustos, e as coroas de flores dos cipós São João que tanto enfeitavam as cabeças nas namoradinhas daquela época e as de agora, (risos).
Subir este manto de areia confesso era árduo, no alto a visão se expande até além de Itapirubá, campos de Restinga e dunas em intervalos, separadas por vegetação de verde exuberante, trilhas e dunas cobertas de gramas, os juncos pareciam cabelos ao vento e nas dobras de duna cílios piscavam neste movimento de areia.
Estou quase chegando ao meu destino, à lagoa do Piala está escondida pela capoeira e eu na direção de Guaiúba sei que estou perto, as dunas se encontram formando bacias, nestas as águas se acumulam, por chuva ou vertentes, piscinas de água cristalina se formam enquanto houver água, estamos no verão e a vida destas piscinas tem duração curta.
A mochila jogada na areia, o boné junto com os tênis, a camiseta por cima de tudo, a corrida e o salto, há que maravilha receber aquela água gelada quando mais profunda, quente no raso, deitar nesta solidão sem ser solitário era meu prêmio, meu segredo, meu paraíso.
Quantas corridas, quantos saltos, quanta alegria, vividas nestas dunas, nestas piscinas, quanta história vivenciada, muitas na companhia de namoradas, outras na caminhada solo redescobrindo caminhos, ervas medicinais, fotografando flores, descobrindo nichos de máculas humana na sua ganância de ocupação pela ocupação, lixo deixado ao vento, pedras das mais variadas formas e cores, foram descobertas, sem valor, porém cúmplices destas caminhadas ainda perpetuam sobre minha mesa de trabalho.
O tempo passou, passou também uma eternidade temporal, um quê de saudade, uma vontade brota forte no peito, olho o tempo, pego meu cajado, já sem mochila, já sem grande distância a percorrer, sinto meus passos mais lentos, o olhar busca na mesma profusão as flores nas lagoas, busca os juncos ao vento e nos cômoros que antes nus agora possuem cobertura de cedros e eucaliptos, oferecem sombras, oferecem períodos de descanso e concentração, permitem que eu ouça a voz do vento entre as folhas agulhadas dos cedros, num ulular de cânticos em harmonia.
É, o tempo passou rápido para mim, as trilhas são sulcos profundos feitos pelo gado, que destrói lagoas menores no seu pisotear, cercas de arame farpado impedem a passagem, oferecendo risco à pele; engraçado como a experiência deu-me um legado moroso, onde ficou minha agilidade, transpor estas cercas é às vezes ato hilário no tombo sofrido, ou o passar pelos quebra corpos e sentir que engordei muito.
Mas ali diante dos meus olhos ainda consigo vislumbrar segredos, sentimentos presos, passos vacilantes na ida e confiantes na volta, dores sentidas na ida e a cura recebida na volta, hoje meu caminhar é lento como o das dunas ao vento, é lento tanto quanto o reabastecimento das lagoas, mesmo assim ainda consigo sentir o gelado das águas destas lagoas de água cristalina formadas pela chuva lá nas dunas, escondidas nem tanto, mas ainda lá.
O seguir provê o coração de imagens, dá aos passos o prazer da caminhada, o respeito por este meio ambiente tão desrespeitado, não entendido, não percebido, aos poucos deixa de existir, campos de macela galega são queimados para que a grama nativa venha saciar o gado, lagoas deixam de existir pela sede do gado, a liberdade deixa de existir pelas cercas do farpado, mas as dunas; estas são eternas, sopradas pelo vento crispam-se em revolta do cerco, tampam capoeiras, silenciam juncos e emudecem as vozes dos cedros.
Hoje é difícil encontrar um jovem que tenha percebido o que percebi nestes anos todos, são alienados da tecnologia ou das visões distorcidas provocadas pelas drogas. Encontrar um que queira perpetuar nas palavras o que se vê e sente ao caminhar na Restinga é o mesmo que encontrar ouro.
Sei que o tempo silenciará minha voz, sei que as palavras se evaporarão ao sol das dunas, sim, sei, mas mesmo assim a cada dia mostro para quem desejar ver as belezas da Restinga, ironia do destino uns dizem que sou bruxo, será?
O convite foi feito, o passo espera ser dado, a aventura pode recomeçar a qualquer hora, basta desejar, basta ter vontade do descobrir o que descobri faz tempo.
E quando acaso a dor vir a ser maior que o desejo, venha, vamos à Restinga caminhar.