Havia naquele tempo de promessas, quando os pedidos eram feitos na calada da noite, uma energia voltando sobre a pequena vila de Esperança.
Uma das casas fora enfeitada com flores nas janelas. O jardim limpo e revigorado nas novas mudas das margaridas, um tronco apodrecido servia de amparo para as orquídeas de várias espécies. Uma casa de pássaros pendurada na ponta da empena da casa, o acesso em cascalho branco, pedras escolhidas a dedo faziam o meio fio deste caminho.
Dizer que era uma casa de amor! As imagens citadas o dizem por si, o cheiro doce e agradável do bolo recém-assado fugia pela janela indo de encontro daqueles que passavam na rua estreita que levava ao centro da vila.
As cortinas, em tecido fino, deixavam à mostra o avesso das flores estampadas, laços de fita azul prendiam-nas do vento. Uma música suave volitava no espaço vindo de uma vitrola antiga lá na sala.
Duas vezes por dia eu passava à frente desta casa, minha curiosidade era tamanha pela beleza que tanto iluminava meus olhos. Engraçado eu não via ou ouvia movimento dentro da casa, mas era visível toda a transformação na manutenção e esmero na lida para deixar tudo em ordem.
Desta feita fui obrigado a parar por mais tempo do que das outras vezes. O doce sabor no cheiro de um bolo de abacaxi era por demais agradável! Parei e olhei por entre o espaço de uma janela aberta, buscando movimento – nada – tudo igual como das vezes anteriores. Acredito que qualquer um no meu lugar ficaria curioso. Tomado de coragem deixei a bicicleta encostada na cerca de tábuas largas pintadas de branco, segui com passos lentos e medidos até o portão que tinha um pórtico com telhado de madeira imitando telhas, uma argola presa a uma cordinha servia de campainha, puxei uma vez, duas vezes; o som de um sino badalando nos fundos da casa soou a princípio tímido depois forte e calou-se, silêncio.
Aquele espaço de tempo entre o ouvir e o ser atendido pareceu-me eterno. Senti um leve suor na fronte, pela afronta deste invadir a propriedade alheia, movido pela curiosidade; voltar atrás não dava mais. O ranger suave de uma porta e o estralar da fechadura azeitada, tudo tão bem cuidado que um pingo de inveja tocou meu coração.
Passos, mais passos, meus olhos arregalaram-se ao ver a pequena jovem no alto dos seus 46 anos. Linda jovem dos cabelos negros, alta para o padrão das mulheres, um caminhar tão suave que acelerou meu coração! Sua aproximação foi um misto de alegria e desespero:
– Que farei, pensei.
– Bom dia meu senhor.
– Bom dia, respondo fazendo força para minha voz ser firme.
– Posso ajudá-lo em alguma coisa?
– Desculpe-me a invasão, mas não resisti à harmonia desta casa e ao cheiro deste bolo de abacaxi, minha fala saiu como cascata libertando-se das toras e pedras fluindo com força e rapidez.
A jovem apenas sorriu, tocou o trinco que nos separava pelo portão, convidou-me a entrar… Entrei, segui seus passos, confesso que adorei o movimento da sua anca, um suave rebolado, agradável aos olhos e um portal para minha juventude.
Quem sabe ela tenha percebido, pois se virou e olhou diretamente para meus olhos, sorriu e voltou a seguir contornado a lateral da casa, não mais olhei sua anca, o que me custou esforço de pensamento. Havia um vermelhidão da minha face que me denunciou na hora.
Chegamos ao pátio no fundo da casa, havia pés de todas as frutas que eu conhecia, um poço coberto e o cascalho branco por toda a parte, caminhos de um lado para o outro sempre com pedras redondas quase do mesmo tamanho servindo de meio fio. Um canteiro estreito separava o meio fio numa linha divisória com o cascalho. Segui a jovem até uma edícula tão esmeradamente limpa, organizada, arejada, perfeita!
Ela, a jovem, abriu a porta e num convide feito com o braço e mão indicou o interior daquela parte da casa.
Entrei e acreditem, não deveria ter entrado.
Não houve mais alguma palavra, nem sequer um olhar furtivo daquelas ancas, nem o esmero dos cuidados nos jardins e residência, quando entrei toda beleza evaporou, todo olor dos doces e frutas sumiram. A juventude deu lugar à corrosão do tempo, os cabelos se transformaram em uma espécie de palha, a face, a de um deserto castigado pelo sol e sal, seu corpo curvado era o de um tronco atingido por um raio.
Uma gargalhada sinistra ecoou no interior do recinto, petrificou-me o coração, aprisionado por amarras em forma de teias, eu era um inseto preso por uma aranha, enrolado esperando ser consumido, sugado.
Meu pensamento se voltou para os tantos dias que passei por aqui, pelos cheiros e beleza das coisas, agora toda esta beleza fora engodo sou um prisioneiro da minha curiosidade, refém da minha gula, condenado pela minha libido.
Os anos passaram tão rápido que meu corpo foi murchando aos poucos, um pedaço de carne defumada na fumaça do tempo. Era alimentado sim, pedaço de bolo e frutas estranhas, sem sabores, sem cheiros, recebi uma vestimenta tramada em fios de palha, pinicava meu corpo e minha pele sangrava o pouco sangue de vida que possuía.
Um dia, quem sabe pelo destino, consegui um pedaço de papel e um toco de carvão; escrevi estas palavras e esperei a luz do meio dia única hora que tinha sossego nesta agonia infligida a mim; escrevi tudo como via no início e como vejo agora. Enrolei o papel e coloquei dentro de um gomo de bambu, com a força que ainda me sobrou atirei para fora do cercado, ainda ouço o som abafado do bambu caindo na estrada.
Olhei ainda o reflexo do guidão cromado da minha bicicleta deixada à cerca tão esmeradamente cuidada. Voltei meus passos para o interior da minha prisão, meus dias se acabarão no fim deste verão.
E como castigo, nesta minha morte seca ainda vejo as ancas rebolando na minha frente e o olhar desta bruxa safada, só não vi o significado naquele olhar.
A curiosidade matou o gato, assim se fez verdade comigo. E para aqueles que passam à frente das casas alheias buscando sabores e ancas, deixo meu recado de alerta nesta carta de um morto.
Fim!
“Resumo do Livro em andamento A CARTA DE UM MORTO”
Com 45 anos dedicados a criação de histórias e a produção de livros, Dario Cabral da Silva Neto, de 60 anos escreve poesias e se dedica ao desenvolvimento de romances. Dos 20 títulos já escritos, oito foram publicados.
Entre 1973 e 2000, Dario era, exclusivamente, poeta, mas em 2000, decidiu se transformar em romancista. Entre as surpreendentes obras, que são vendidas por R$ 30, estão os clássicos Catador de Sonhos, Uma Questão de Amor, A Ravina, Pétalas de Amor, O Segredo de Melissa e a Caminhada do Zé Mundão.
Os livros escritos por Dario não tem um foco religioso, mas trazem mensagens espiritualizadas.
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